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Racismo contra crianças Kaingang em Mato Castelhano expõe descaso histórico e urgência na demarcação do território

Racismo contra crianças Kaingang em Mato Castelhano expõe descaso histórico e urgência na demarcação do território

Claudia Weinman
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https://afrontejornalismo.com.br/criancas-indigenas-sao-vitimas-de-racismo-durante-celebracao-do-dia-das-criancas-em-mato-castelhano-rs/

Por Claudia Weinman e Ivan Cesar Cima.

Um mês do caso de racismo contra crianças Kaingang em Mato Castelhano (RS): nenhum desdobramento, nenhuma justiça!

No dia 10 de novembro, completou-se um mês do crime de racismo cometido contra crianças indígenas no município de Mato Castelhano, no Rio Grande do Sul. O caso ocorreu durante uma atividade aberta ao público, promovida pela prefeitura em alusão ao Dia das Crianças. No entanto, o momento tão aguardado pelas crianças Kaingang terminou de forma triste, marcada pela violência e por um ato de racismo.

A Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ARPINSUL) denunciou o episódio de discriminação e racismo com base nos relatos das famílias. As crianças indígenas foram impedidas de participar das atividades lúdicas promovidas no centro da cidade. Elas teriam sido barradas no transporte público e privadas do acesso aos brinquedos e presentes distribuídos durante o evento. Segundo os depoimentos, o motorista de uma van e uma professora afirmaram que “os brinquedos eram só para as crianças da cidade”.

Crime de racismo aconteceu no dia 10 de outubro, durante atividade organizada pela prefeitura. No dia 13, as famílias kaingang realizaram mobilização de denúncia. Foto: Lideranças Terra Indígena Mato Castelhano.

Em resposta, as famílias indígenas realizaram, no dia 13 de outubro, uma manifestação em frente à Prefeitura Municipal. O ato teve como objetivo exigir respeito às crianças indígenas, denunciar o racismo institucional e cobrar medidas concretas das autoridades locais para que situações como essa não se repitam. As lideranças Kaingang protocolaram um documento junto à Prefeitura Municipal e à Brigada Militar reivindicando respeito, o fim de práticas discriminatórias e a inclusão efetiva das famílias Kaingang nas programações públicas e no orçamento municipal. Também foram enviados documentos ao Ministério Público Federal, à Comissão de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul e ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas do RS.

Até o momento, entretanto, as lideranças indígenas não receberam qualquer retorno sobre a situação por parte de nenhum dos órgãos mencionados.

“Quando se nega o direito territorial para uma comunidade indígena, os demais direitos são automaticamente negados”

Foto: Lideranças Terra Indígena Mato Castelhano.

Passaram-se trinta dias, mas a indignação permanece viva entre as famílias Kaingang, como parte de uma luta que já dura mais de vinte anos pelo território em Mato Castelhano. Trata-se de uma cidade essencialmente indígena, mas que, em seu comportamento cotidiano, ainda revela aversão aos povos originários. A cacica Thaina Inácio afirma, inclusive, que os Kaingang não vivem na cidade, mas sim, sobrevivem. “Somos ameaçados a todo momento, sofremos em nossos acampamentos, atingidos por tiros e ameaças de extermínio. Somos marginalizados à beira da BR, e nossos filhos precisam se inserir nas grandes cidades comercializando artesanatos. Esse contato contínuo, muitas vezes, reflete na própria perda da língua materna”, relata Thaina.

A cacica manifesta repúdio não apenas ao caso de racismo ocorrido no dia 10 de outubro, mas a toda a violência histórica enfrentada pelo seu povo.

“Trago a minha indignação e o meu pedido de justiça. Trago comigo a revolta, pois, quando se nega o direito territorial a uma comunidade indígena, todos os demais direitos são automaticamente negados — saúde, educação, tudo se torna muito precário”, destaca a liderança.

“Porque as crianças dos outros puderem usufruir de tudo e as nossas foram expulsas”?

A liderança Kaingang faz questão de questionar as autoridades se consideram “normal” a forma como os indígenas são tratados, tomando como exemplo o que ocorreu no dia 10 de outubro. “As crianças foram impedidas de usufruir dos brinquedos, retiradas da fila e barradas de entrar no transporte público. O alimento que estava sendo distribuído na atividade foi enviado, depois que todos os demais se serviram, em uma caixa de papelão para nós. Mas eu pergunto: será que essa caixa era própria para esse fim? Qual a procedência? Por que as demais crianças e mães do evento foram servidas em bandejas, enquanto para nós enviaram em uma caixa? Por que as crianças dos outros puderam usufruir de tudo, e as nossas foram expulsas?”, questionou.

Como ela mesma destaca, a luta pela demarcação e pelo direito de existir não é pacífica. Por isso, há também a cobrança para que o governo federal agilize o procedimento de demarcação da Terra Indígena Mato Castelhano – procedimento administrativo que segue sem qualquer movimentação por parte do Executivo. Essa demora na garantia dos direitos territoriais apenas perpetua a vulnerabilidade e o desrespeito aos povos indígenas.

“Já perdemos crianças à beira da BR, e também idosos. Não se pode levar vinte anos para demarcar um território indígena. Esse território foi habitado por nossos antepassados e precisa ser devolvido a nós. Sofremos todos os tipos de violência possíveis quando não temos o nosso território; somos discriminados por todo o sistema e não somos incluídos em nenhum projeto municipal”, enfatizou a liderança.

Quem sofre não esquece

Os reflexos do racismo ocorrido no dia 10 ainda persistem entre as mães e, especialmente, entre as crianças vítimas da violência. O cacique Cláudio Cristão relata que, embora a comunidade tenha se esforçado para organizar alguns presentes para as crianças e as mães tentem permanecer unidas, será difícil esquecer o que aconteceu.

“Organizamos uns presentinhos, mas isso não será suficiente para que elas esqueçam o racismo que sofreram. As mães estão tentando se animar, tomando chimarrão juntas, mas só o tempo pode ajudar. É um momento triste para nós”, pontuou.

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Cláudio também ressalta que quem sofre com o racismo não esquece a dor. “Como um pai ou uma mãe pode ver uma criança passar por tanto ódio das pessoas? Isso fica marcado para a vida inteira. Inclusive, não está sendo fácil para as pessoas irem trabalhar. Já tínhamos passado por inúmeras situações, mas algo tão evidente assim, com o racismo tão explícito, ficou marcado. Não está fácil superar.”

Na mesma linha, o cacique Ubiratam Inácio destaca um episódio em que sua filha, estudante universitária e usuária do transporte público, foi impedida de exercer seu direito de ir e vir.

“A gente sofre com isso há mais de vinte anos. No caso da minha filha, tivemos que apelar ao Ministério Público para garantir que ela pudesse utilizar o transporte”, contou.

Apesar de tantas dores, Ubiratam mantém a esperança na justiça e na defesa dos direitos dos povos indígenas. “A gente não consegue mais ficar calado. Ficamos por muitos anos, mas de hoje em diante não vamos mais nos silenciar — vamos buscar nossos direitos e denunciar. Sabemos que existe justiça, e ela deve nos acolher e apoiar. Esperamos que esse cenário mude a partir de agora. Vamos permanecer nesta cidade — é terra indígena — e aguardamos uma resposta da justiça”, finalizou.

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