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O extremista judeu israelense Bezalel Smotrich e a deslegitimação do autêntico e a legitimação do estranho

O extremista judeu israelense Bezalel Smotrich e a deslegitimação do autêntico e a legitimação do estranho

Jornalismo das Gentes
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Após um século e meio de escavações arqueológicas que reviraram, meticulosamente, toda a terra palestina, nenhuma evidência arqueológica foi encontrada, seja em escrita, em textos ou em representações que relacionem a história da Palestina às narrativas que tentam justificar o projeto sionista.

 

“Os fundadores da colônia sionista David Ben-Gurion (polonês nascido como David Grün) e Yitzhak Ben-Zvi (nascido Yitzhak Shimshelevich e ucraniano), talvez, em um momento de rara honestidade, admitiram, em um livro publicado em 1919, escrito por ambos, que a maioria dos palestinos nativos eram descendentes dos antigos hebreus que se converteram ao cristianismo e depois ao islamismo – uma reivindicação que hoje os sionistas tentam enterrar completamente.”.

Joseph Massad, Professor na Universidade de Columbia, New York (EUA).

Ahmed Al-Dabash¹

Traduzido e expandido por Tufy Kairuz*

O Ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, declarou, há quatro meses (19/02/2023), em Paris, que “o povo palestino é uma invenção que não tem mais de 100 anos”. Mais tarde, durante a comemoração da morte de ativista franco-israelense, o direitista Jacques Kupfer, Smotrich prosseguiu em sua arenga: “a verdade dita por Jack Kupfer deve ser divulgada sem hesitação… Ele disse que não existe tal coisa chamada palestinos – porque não existe um povo palestino”. E pergunta: “Você sabe quem são os palestinos?”, para ele próprio responder: “Eu sou palestino”, referindo-se à sua avó, que nasceu na cidade de Metula, há 100 anos, e seu avô, descendente da décima terceira geração de uma família de Jerusalém, como “os verdadeiros palestinos”.

E vai adiante: “Os árabes que vivem ao redor deles (palestinos – NdE) que não gostam disso … Eles inventaram um povo imaginário e reivindicam direitos imaginários na Terra de Israel apenas para combater o movimento sionista. Esta é a verdade histórica, esta é a verdade bíblica… Que os árabes em Israel, assim como alguns judeus que são céticos em relação a Israel, devem ouvir. Esta verdade deve ser ouvida aqui no Palácio do Eliseu e no Whitehall (Londres) e na Casa Branca, em Washington D.C. e todos precisam ouvir essa verdade, porque é a verdade. De acordo com a lei internacional, o povo é definido por sua história, cultura, idioma, moeda e liderança. Quem é o primeiro rei palestino? Qual é a língua palestina? Existia uma moeda palestina antes? Existe uma história ou cultura palestina? não.”.

Antes de analisar o discurso grotesco de Bezalel Smotrich, um parêntesis para comentar a “genealogia” do Ministro das Finanças da colônia sionista. Sem dúvida, ele é “palestino”, conforme afirma, se considerarmos que é palestino quem nasce em solo palestino. Certamente como são “sul-africanos” os que nascem na África do Sul e descendem de invasores bôeres e britânicos, caso do famoso pioneiro do transplante de coração Christiaan Barnard, que deveria se sentir tão “sul-africano” quanto Nelson Mandela. Ou mesmo quem era “argelino” e descendia de invasores franceses, alguns famosos, como Louis Althusser, Albert Camus, Paul Belmondo, Jacques Derrida, Yves Saint Laurent, entre tantos outros que, talvez, pela lógica distorcida do colonialismo, se sentissem tão argelinos quanto o Emir Abdel Khader, Ahmed Ben Bella ou o músico Cheb Khaled.

O que os sionistas, como Smotrich, têm em comum com os sul-africanos e os pied-noir franceses com a Argélia é o projeto colonizador de povoamento, que pressupõe a remoção ou destruição da população nativa, mascarada em narrativas falaciosas e concretizadas via políticas brutais de apagamento e repressão para justificar suas existências como colônias. É interessante notar como opera o subconsciente colonial sionista que, em última análise, se trai mesmo quando tenta se legitimar.

Os antepassados de Smotrich, que ele eufemisticamente chama de “pioneiros”, são, em uma linguagem menos hipócrita, invasores radicalizados por uma ideologia colonial. Mesmo seu avô, citado por ele de forma anônima e seletiva, que chamava-se Yehuda Leib Monsohn, era de uma família de euro-judeus asquenazes (com alguma miscigenação com norte-africanos sefarditas) que imigraram para a Palestina na era moderna. Ainda mais interessante, seu supracitado avô, que ele usa para justificar sua “palestinidade” em seu discurso de invasor colonial, lutou nas fileiras do exército otomano, aliás, como qualquer súdito leal ao Califa Mehmed V, fosse cristão, muçulmano ou judeu. Portanto, Smotrich e seus antepassados sionistas são “palestinos”, mas o que os diferencia (seu avô Yehuda Leib Monsohn incluído) dos outros palestinos é sua determinação em destruir o povo palestino nativo e de permanecer, para sempre, como um colono invasor em um mundo que a eles não pertence.
Israel é um bastardo enjeitado

O que Smotrich não disse em sua arenga fanática e historicamente vazia é que a entidade sionista é uma entidade bastarda, parida como resultado da agressão ao povo palestino e da usurpação de suas terras. Também não disse que o projeto sionista preconiza o assentamento-desenraizamento-substituição, cuja essência se baseia na limpeza étnica da população nativa.

O empacotamento de laranjas em uma oficina familiar. Jaffa, 1907. Bibliothèque nationale de France.

As histórias palestinas, que nossos ancestrais contam sobre a Nakba e a limpeza étnica foram confirmadas pela documentação preservada nos arquivos israelenses. O historiador israelense Ilan Pappe, em seu livro “A Limpeza Étnica da Palestina”, confirma que a “liquidação étnica planejada e sistemática” foi o que aconteceu na Palestina como “resultado inevitável da tendência ideológica sionista, que aspirava à Palestina ser exclusivamente para os judeus” (Pappe, 2007).

Ou, como diz o pensador francês Enzo Traverso, de origem italiana, em seu livro “The End of Jewish Modernity: A History of a Conservative Turn” (O fim da modernidade judaica: a história de uma virada conservadora): “Uma coisa certa é que o comportamento do exército israelense durante a conflito fazia parte do projeto sionista de estabelecer um estado judeu sem árabes” (TRAVERSO, 2020). Assim nasceu “Israel”!.

Uma Torá imaginária e a-histórica

Após um século e meio de intensa escavação arqueológica, em que cada palmo e cada pedra da Palestina foi revirada, ainda não foi encontrada nenhuma evidência arqueológica, seja escrita ou em inscrições, em textos ou mesmo algo que pudesse ser interpretado como se referindo a uma história “hebraica/israelense/judaica”. Dessa maneira, qualquer tentativa de conciliar “evidências” bíblicas e não-bíblicas com o intuito de provar a historicidade de narrativas “hebreu/israelense/judaica” resultou em um retumbante fracasso que ainda perdura.

Desde o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, uma nova geração de arqueólogos começou a desenvolver e utilizar um método inovador de escavação. É um método de levantamento de campo completo, em áreas geográficas específicas (Pesquisa Regional), diferente do método de cavar em locais separados e isolados. Nesse contexto, a Universidade de Tel Aviv formou várias equipes de especialistas de várias disciplinas para auxiliar na arqueologia e que examinaram cada metro quadrado das montanhas e planícies palestinas.

Nos últimos vinte anos, as referidas equipes coletaram uma massa de informações que revolucionaram a arqueologia da Palestina. Como resultado, as informações arqueológicas acumuladas e analisadas tornaram quase impossível a tarefa de certos historiadores e arqueólogos de relacionar tais descobertas à narrativa bíblica.

O trabalho levou um dos arqueólogos mais brilhantes da academia israelense, Israel Finkelstein, a pedir pela desvinculação da arqueologia sionista da influência do texto bíblico. Em um simpósio realizado pela Universidade Ben-Gurion, em 1998, cujo tema era “As Origens de Israel”, Finkelstein confirmou que as fontes bíblicas, que dominavam as pesquisas anteriores sobre as origens de “Israel”, haviam perdido a relevância. Portanto, tais fontes não poderiam ser mais consideradas, pois os livros da Torá foram escritos séculos depois dos acontecimentos tratados no texto. Além disso, as narrativas bíblicas tinham um caráter evangélico (missionário), obviamente tendencioso, que dificultava a busca por elementos históricos (FINKELSTEIN, 2005).

Um dos pioneiros mais proeminentes dessa tendência foi Thomas L. Thompson, professor de Arqueologia da Marquette University, em Milwaukee, EUA. Thompson foi criticado por sua oposição às visões bíblicas tradicionais, posicionamento que levou à sua demissão, em 1992, após publicar o livro intitulado “História dos tempos antigos do povo de Israel”, em que refuta a historicidade da Torá. Em outras palavras, a Torá não poderia ser considerada como um livro de história da região e de suas civilizações. Outrossim, a base para a pesquisa histórica na Palestina deveria ser as escavações arqueológicas e o seu rico acervo de antiguidades, estas sim fontes confiáveis para reescrever a história daquelas regiões. Thompson observou em seu livro:

“Qualquer tentativa de escrever a história da Palestina no final do segundo milênio a.C., ou no início do primeiro milênio a.C., utilizando fontes bíblicas resulta em fracasso total e pode ser considerada farsesca, risível e bem-humorada. As histórias do Antigo Testamento nada mais são do que lendas e contos escritos bem mais tarde, durante o século II a.C. É uma perda de tempo alguém tentar provar tais eventos bíblicos através da arqueologia antiga, pois o Antigo Testamento não tem valor como fonte histórica (THOMPSON, 2003, pp. 168-169).”.

Outro especialista, Keith Whitlam, professor de Ciências Bíblicas no Departamento de Estudos Teológicos da Universidade de Stirling, na Escócia, trabalhou na revisão da literatura que tratava da História Antiga da Palestina e percebeu, na época, que o discurso orientalista dominava a produção acadêmica, principalmente no que se referia à História palestina. Whitlam apontou que havia um processo de obliteração deliberada e programada pelo movimento sionista nos achados arqueológicos na Palestina e uma tentativa de interpretá-los de maneira tendenciosa. Em seu livro “A Fabricação do Israel bíblico e a obliteração da História palestina”, conclui que “a imagem do passado de Israel, como foi mencionado na maioria dos capítulos do texto bíblico, nada mais é do que uma história fictícia; isto é, uma fabricação da história” (WHITLAM, 2002, p. 49).

Porém, o “tapa” mais duro e devastador recebido pelos pesquisadores do “antigo Israel” na Palestina foi desferido por Ze’ev Herzog, professor do Departamento de Arqueologia e Antiga Civilização Oriental da Universidade de Tel Aviv, em seu relatório intitulado “A Torá: nenhuma evidência na Terra”, publicado pelo jornal israelense Haaretz, em 18/11/1999. Embora não se concorde com todas as premissas teóricas do mundo sionista ou com algumas de suas conclusões sobre aspectos da História palestina antiga, não se pode negar, por isso, a tremenda importância de sua pesquisa.
Herzog afirma:

“Após setenta anos de intensas escavações na terra da Palestina, os arqueólogos chegaram a uma conclusão assustadora: não havia nada de autêntico nas narrativas passadas por gerações. São apenas lendas, pois não fomos para o Egito, nem saímos de lá, não dominamos a Palestina, não nos dividimos em 12 tribos e não há vestígios de grandes reinos de David, Salomão, exceto, na melhor das hipóteses, de entidades tribais menores. Acredito que toda a humanidade, não apenas os cidadãos de Israel e os filhos do povo judeu, ficarão surpresos ao ouvir os fatos descobertos pelos arqueólogos que realizaram escavações na terra da Palestina” (HERZOG, 1999, s.p.).

Portanto, uma verdadeira revolução ocorreu na validade da Torá como fonte histórica pelos arqueólogos sionistas. A maioria dos envolvidos em discussões científicas no campo das antiguidades e da história do “povo de Israel”, que buscavam na terra evidências das histórias contidas no Antigo Testamento, tiveram que admitir que as etapas da formação do “povo de Israel” foram completamente diferentes da descrita na Torá. Para muitos é difícil aceitar tais descobertas, mas hoje está claro, para estudiosos e pesquisadores, que o “povo de Israel” não viveu no Egito, não perambulou pelo deserto, não dominou a terra por meio de uma campanha militar e não a povoou com suas doze tribos. É ainda mais difícil digerir o fato que o reino unificado de Davi e Salomão, descrito pela Bíblia como uma “superpotência” regional, era no máximo um pequeno reino tribal.

Além disso, os sionistas ainda teriam que conviver com informações chocantes, como as reveladas por Neil Silberman e Israel Finkelnstein, professores de Arqueologia na Universidade de Tel Aviv, contidas no livro, “A Torá Judaica Revelada em Sua Verdade”. Neste livro ficou claro, para os autores, que havia uma profunda contradição entre o que a Torá escreveu sobre os detalhes dos locais, a geografia dos profetas e reinos dos “filhos de Israel” e o que foi descoberto pela ciência arqueológica (FINKELNSTEIN AND SILBERMAN, 2005).

Deslegitimando o autêntico

Quanto à evidência histórica da existência de um povo palestino, as escavações indicam que “o homem existe na Palestina há centenas de milhares de anos, como comprovam as grandes estruturas e monumentos de pedra encontrados em vários sítios arqueológicos. Ademais, todas as primeiras revoluções humanas ocorreram naquelas regiões, inclusive com a domesticação das plantas e animais. A agricultura, portanto, foi o fator mais importante na gênese de uma vida sedentária estável. O resultado foi o surgimento das primeiras comunidades, depois das aldeias e depois das cidades. Isto foi acompanhado pelo desenvolvimento na vida social, econômica, intelectual, artística e política.

Então, quem eram os criadores dessa civilização? Os pioneiros da primeira revolução humana são conhecidos como os “natufianos” (relativos ao Vale Natuf, a noroeste de Jerusalém) e os esqueletos encontrados em diversos locais indicam que eles eram de baixa estatura, magros e tinham características mediterrânicas, com suas cabeças compridas e rostos estreitos, como muitos dos árabes de hoje. Na Palestina, foram descobertos cerca de cinquenta templos natufianos em um antigo cemitério, distante trinta quilômetros de Jerusalém. (AL-DABASH, 2017).

Wadi en-Natuf, junho de 2000.

As pesquisas sugerem que desde o Neolítico ocorreu um afluxo de grupos falantes de línguas semíticas do deserto para a Palestina. Neste contexto, Thomas Thompson afirmava que as mudanças na Síria-Palestina no final do período neolítico e no início da Idade do Cobre não podem ser consideradas invasões em grande escala, que teriam causado a expulsão da população local. Outrossim, a mistura étnica na Palestina tornou-se complexa e não há informações sobre qualquer transformação de monta durante a transição para a Idade do Cobre (4.000 e 3.000 a.C.). Ademais, os padrões culturais e materiais da população local, em aldeias e cidades de tamanho considerável e uma ordem social solidamente estabelecida, torna improvável uma invasão da Síria-Palestina por outros povos ou grupos de camponeses e pastores de língua semita. Assim, a vida da população local permaneceu inalterada e as mudanças linguísticas ocorreram de forma gradual (THOMPSON, 2003).

Nesta altura, se percebe claramente que as afirmações de Smotrich, um colono de origem alienígena radicalizado, como tantos outros, seriam risíveis se não fossem trágicas. A propósito da origem do nome “Palestina”, remetemos ao livro “Palestina, Quatro Mil Anos de História”, do historiador e acadêmico palestino Nur Masalha, que confirma, com base em evidências arqueológicas, que os palestinos são o povo da terra, suas raízes são profundas em seu solo e sua identidade original e legado histórico precederam o nascimento do movimento nacional palestino moderno, no final da Era Otomana e o surgimento do movimento colonial sionista antes a Primeira Guerra Mundial” (MASALHA, 2020).

Heródoto e a Palestina

Mas vamos recorrer às memórias daquele historiador grego, que viveu no século V a.C. e que ficou conhecido como o “pai da história”, tendo escrito o livro “História” por volta do ano 440 a.C. (HERODOTUS, 1887). Heródoto escreveu sobre os hábitos dos habitantes da “Palestina” ao mencionar sobre a prática da circuncisão: “A circuncisão é conhecida pelos egípcios e etíopes desde os tempos antigos e a prática é considerada conhecida pelos fenícios e sírios, habitantes da Palestina, como originária do Egito”. Heródoto também se refere à região da “Palestina”, dizendo: “O monumento erguido por Sesostris nos países que ele conquistou quase desapareceu, mas vi com meus próprios olhos que o monumento ainda está estabelecido naquela parte da Síria chamada Palestina”.

Heródoto também menciona a “Palestina” quando descreve os impostos pagos por cada região, segundo a divisão administrativa dos persas, em que a “Palestina” era parte da quinta região do império persa.

Escultura de Heródoto / Crédito: Domínio Público, via Wikimedia Commons.

Por último, Heródoto volta a falar, mais uma vez, sobre a “Palestina”, o território, ao mencionar:

“O país que se estende da terra dos fenícios até as fronteiras da cidade de ‘Cadetes’ (Gaza) é habitado pelos sírios que são chamados de “palestinos”. A partir desta cidade – que é comparável à cidade de Sardes em seu tamanho – todos os portos, mesmo Genesius, pertencem ao rei da Arábia. E a área que se estende dali até o lago Serbonese (Sabkhat al-Bardawil), perto da qual o monte Cássio desce para chegar ao mar, também pertence à Síria.”. (HERODOTUS,2001).

A invenção do povo judeu

O processo de invenção do povo judeu foi baseado em dois pilares principais: a ideia da diáspora judaica e de que o judaísmo, desde a sua origem, permaneceu limitado a um grupo étnico. Portanto, o judaísmo na Palestina teria sido banido de sua terra original, mas se manteve etnicamente “puro”, sem a influência de outros povos. Tais afirmações foram refutadas por muitos pesquisadores, entre estes o historiador israelense Shlomo Sand, em seu livro “A Invenção do Povo Judeu”. Sand nega categoricamente a existência de uma diáspora judaica, promovida pelos romanos, que teriam realizado uma deportação em massa dos judeus no ano 70 d.C., após a destruição do Templo, afirmando que “não encontraremos na rica documentação romana sequer uma referência a qualquer deportação da terra da Judéia” (SAND, 2011).

Corroborando a afirmação de Sand, Aharon Oppenheimer, outro especialista israelense da Universidade de Tel Aviv, observa que a narrativa do “exílio” começou após a destruição do Segundo Templo Judaico e foi criada e propagada pelos primeiros cristãos que viam a destruição do templo judeu como uma punição ao “deicídio” judaico e, por extensão, como uma afirmação dos cristãos à condição de novo “povo escolhido”, ou o “novo Israel”. Segundo Oppenheimer, as narrativas do “exílio” e da “diáspora”, que seguiram à destruição do templo, podem ser facilmente refutadam pelo fato que os judeus desfrutavam de liberdades, tinham autonomia religiosa, econômica e cultural a ponto de organizar a revolta de “Bar Kochbae”, em 132, demonstrando possuir unidade e poder político-militar apenas sessenta e dois anos após a destruição do templo (OPPENHEIMER, 2019).

Shlomo Sand. Foto: Khaled Diab

Sand também refuta uma das justificativas mais caras ao sionismo ao afirmar que a religião judaica não era uma religião missionária. A conversão ao judaísmo, segundo este autor, não foi aleatória, mas, sim, parte de uma política de judaização e propaganda religiosa que estava sendo bem-sucedida com o colapso do mundo das religiões ditas pagãs. A tradição historiográfica (não-judaica), que incluía os grandes estudiosos da Antiguidade, como Ernest Renan, Julius Wellhausen, Edward Meyer e Emil Shaerer, enfatizavam, segundo Theodore Momsen, que “o judaísmo na Antiguidade nunca foi um movimento fechado ou isolado, pelo contrário, era cheio de entusiasmo pela judaização em um grau não menor que o cristianismo e o islamismo” (SAND,2011).

Em seu estudo “Antropologia Judaica”, o intelectual egípcio Gamal Hamdan abordou a teoria da “pureza racial” judaica e concluiu que “os judeus atuais não são os filhos de Israel; os judeus de hoje são totalmente misturados, uma mistura que os distancia de qualquer elo antigo com a Palestina e não há ligação antropológica com aquelas regiões, exceto uma conexão religiosa” (HAMDAN, 1996).

Em 1976, Arthur Koestler, autor húngaro de fé religiosa judaica e sionista, publicou uma obra demolidora, intitulada “The Thirteenth Tribe and the Jews of Today” (A 13ª Tribo e os judeus de hoje), que foi traduzida para vários idiomas e gerou uma onda de debates. Na obra, o autor explicava o impacto dos khazares, tribos turcomanas judaizadas por volta do séc. X, na formação dos judeus contemporâneos e concluiu:

“A maioria dos judeus modernos não é de origem palestina, mas de origem caucasiana e que o fluxo principal da imigração judaica não fluiu do Mediterrâneo através da França e da Alemanha para o leste e depois de volta, mas sim o fluxo seguiu continuamente para o oeste do Cáucaso através da Ucrânia para a Polônia e daí para a Europa Central – e quando esses assentamentos coletivos sem precedentes surgiram na Polônia, não havia judeus suficientes no Ocidente para explicar esse fenômeno, enquanto no Oriente havia populações inteiras se movendo em direção a novas fronteiras” (KOESTLER, p. 177, 1991).

Por fim, tragamos Paul Wexler, professor emérito de Linguística na Universidade de Tel Aviv e autor dois livros – The Ashkenazic Jews: A Slavo-Turkic People in Search of a Jewish Identity (Os judeus asquenazes: povos turco-eslavos na busca por uma identidade judaica) e The Non-Jewish Origins of the Sephardic Jews (As origens não-judaicas dos judeus sefarditas), publicados, respectivamente, em 1993 e 1996, somados a inúmeros artigos, incluindo o escrito com o geneticista israelense Eran Elhaik, intitulado “The Missing Link of Jewish European Ancestry: Contrasting the Rhineland and the Khazarian Hypotheses” (O elo perdido da ancestralidade euro-judaica: contrastando as hipóteses do Reno e de Khazar). Resumidamente, a pesquisa de Wexler afirma, em estudos linguísticos, que nem asquenazes tampouco sefarditas possuem uma ligação com a Palestina. Ambos são descendentes de populações convertidas, turco-eslavas e berberes, respectivamente. Portanto, relacionados à Palestina apenas pela religião, como seria o caso dos adeptos do cristianismo no Ocidente. Como era de se esperar, os estudos de Wexler, como de outros, foram severamente criticados, mas já era tarde demais, pois seria preciso explicar como alguém que chega à posição de professor emérito, em uma renomada universidade israelense, pode ser considerado um “charlatão”.

Concluindo, as afirmações de Smotrich, um invasor em crise existencial, que sofre da maldição da ilegitimidade, oscilam entre a ignorância, a loucura e o fanatismo supremacista, resultantes de uma lavagem cerebral imposta pelo discurso bíblico/sionista. Convém lembrar que a justiça aos palestinos, e a outros povos vítimas de ideologias supremacistas do Ocidente, começa com a desvinculação histórica dos “textos bíblicos” ou de qualquer outro texto de natureza religiosa, que “justificam” os processos que culminam com a destruição de nações e a invenção de outras sobre seus escombros, afetando tragicamente o destino de milhões de seres humanos que, em pleno século XXI, continuam subjugados aos caprichos de uma “divindade” tribal, escolhido entre tantas na Idade do Bronze, adorada por um punhado de pastores e camponeses vivendo na periferia das grandes civilizações.

*Tufy Kairuz é historiador, professor, PhD em História pela Universidade York, no Canadá, e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

FONTES:

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Publicação original: Fepal. com. br.