Narciso e o espelho mágico
Era uma noite gelada. O luar rasgava a escuridão com um brilho quase cruel, como se quisesse expor cada sombra à sua luz impiedosa. As ruas desertas conspiravam contra a vida, impondo um silêncio hostil, uma solidão sufocante. Respirar fundo era um desafio, quase um atentado contra os próprios pulmões, ninguém ousava sair sem necessidade.
Sob camadas de roupas pesadas, o frio permanecia implacável: atravessava a pele, espetava como agulhas, alcançava os ossos, tocava a alma. Não era apenas um frio que congelava; era um frio que despertava algo ancestral, um instinto feroz, uma urgência ardente por calor, como se a própria existência dependesse de uma chama impossível.
Inaê abraçou o cobertor como quem segura a última faísca de vida. O frio continuava, mas o sono profundo a levou para um doce sonho. Estava com sua filha de 4 anos. Os prantos da criança exigiam atenção, era sua forma de comunicar suas necessidades. De repente, surgiu uma solução enigmática: um espelho fantástico, colorido, capaz de prender o olhar e aquietar choros e manhas.
Tudo parecia perfeito. A calma era tanta que afastava o frio, o calor, até a fome. Diante do espelho devorador de atenção, a comida era ingerida sem percepção de seu sabor. A essência da criança se diluía no desejo e na satisfação narcisística. O ambiente era tão silencioso que não parecia haver uma criança ali; o único som vinha do espelho mágico, mais agradável que o choro.
Eis que Narciso, da mitologia grega, ressurgiu. Não mais como mortal vaidoso, mas como um deus com poderes inimagináveis. Zeus tornou-se pobre, medíocre; sua força não atraía a atenção do espelho inventado por Narciso. A existência perdeu valor. O terror de Hades sucumbiu diante do espelho das aparências.
A filha de Inaê foi devorada pelo espelho. A mãe nem percebeu, também estava presa ao poder enigmático e devastador. O terror não soava com tambores do reino dos mortos; ao contrário, era belo, colorido, embalado por canções que moldavam consciências, destruíam essências, transformando mãe e filha em meras existências, destituídas de ser.
Nesse instante, Inaê acordou. Não tinha filha. Não tinha vida. Apenas o espelho mágico de Narciso, que a abraçara e a desconectara de si mesma. Seus olhos e dedos estavam vidrados no artifício inventado por Narciso, que para a humanidade ganhou um nome mundano: celular ou, como muitos preferem chamar, smartphone.
Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.
