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A História da Madrasta

A História da Madrasta

Rodrigo Luis Mingori
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Depois de muito tempo longe, e de alguns turbilhões na minha vida, peço escusas e licença para voltar com nossos escritos. Gostaria de compartilhar um texto que havia ficado pela metade nas imposições feitas pela vida, espero que gostem (quando descobri isso fiquei realmente interessado). 

 Não sei se vocês já ouviram, mas existe uma história anedótica que circula muito em grupos da extrema direita. Ela tem ares de adágio, sabedoria infalível, funciona como alegoria, tipo a caverna do Platão. Além disso, também cumpre uma certa função como ritual de iniciação, separando o verdadeiro iniciado do falso pretendente. Quem conhece a história é um iniciado, e a menção dela funciona também como apito de cachorro.  

Vamos a história:  

Pois havia uma família, um pai, uma mãe e dois filhos. A mãe era aquela que segurava as pontas, gerindo o orçamento da família. Ela não deixava ninguém ter gastos fúteis, se preocupava com o futuro dos filhos. Guardava dinheiro para faculdade e afins. Todos trabalhavam e ninguém gastava com roupas caras, viagens atoa, esbanjando dinheiro, porque o dinheiro deveria ser guardado para uma emergência, ou garantir o futuro. Um dia, infelizmente, a mãe vem a falecer e o pai acaba por namorar outra mulher, a madrasta. A madrasta quando chega na família, percebe a quantidade de dinheiro guardada e pensa em gastar o dinheiro. Começaram a viajar, comprar roupas caras, joias e acessórios, esbanjar. Até que gastaram todo o dinheiro guardado e não estavam mais acumulando, nem ganhando mais dinheiro, apenas gastando o dinheiro que havia sido guardado pela prudência da mãe. Quando a reserva acaba, o luxo vai embora e a madrasta percebe que não tem mais como esbanjar e resolve ir embora. Quando ela vai embora, a família fica sem dinheiro, endividada, pobre e com saudade da mãe que cuidava e guardava o dinheiro da família.  

Essa alegoria fantasiosa é extremamente sintomática sobre alguns elementos do neoconservadorismo de extrema direita no Brasil hoje. Antes da análise, vou acrescentar os silogismos e significados dados pelo grupo que reproduz essa falácia: a família é a sociedade brasileira, a mãe prudente é a política bolsonarista em relação à economia e ao bem-estar e a madrasta “é o Lula”, ou mesmo, ainda, a própria primeira-dama.  

A infantilidade brutal dessa história desgraçada nem se esforça em esconder uma série de erros vergonhosos. Além de toda misoginia, heteronormatividade e um abissal desconhecimento da simples realidade, ela tenta construir um continho de fadas imbecil que PRECISA estar longe de qualquer realidade tangível para alcançar uma agenda e um efeito prático, por isso ela precisa ser uma alegoria. Para sustentar esse argumento não é possível utilizar qualquer dado ou fonte advinda da realidade ou minimamente da experiência sensível. É um ensaio fantasioso e envergonhado de realidade. Uma tática ultrapassada em alguns séculos de construir uma idealização lisérgica e forçar um debate num mundo de sonhos, onde o delirante constrói as regras (a seu favor) para estabelecer um campo de debate controlado. Essa inclusive é uma boa descrição de qualquer discussão política, social ou cultural na internet nas últimas décadas.  

Especificamente, essa estética bolsonarista advinda das táticas mais falidas do maníaco Goebbels ganha força com a descrença ou o incomodo direcionada a ela. Como uma criança que pratica bullying, “parecer irritado” é o suficiente para confirmar sua postura. O nojo e o sentimento de sujeição que verte na tentativa de incutir minimamente a realidade ou contra-argumentar tendo que afirmar o óbvio é frustrante. É no campo das afeções que se empoderam essas historinhas e é com o fígado que acontece o debate. A suposta racionalidade no campo político foi sepultada há algum tempo. 

É frustrante ter que afirmar o óbvio para um adulto. Esse é o sentimento que essa história causa e ao causar isso ela ganha força.  

A ignorância contida no significado dessa história é pedagógica sobre com quem estamos lidando quanto a economia política. Seguindo a esteira da desvairada maneira de fazer da realidade material capacho da ideologia igual no mais alucinado terraplanismo político-econômico, continuamos (para usar outra alegoria) jogando xadrez com um pombo.  

Mas vamos lá. Tentarei propor uma análise didática de alguns tópicos óbvios e outros nem tanto, de forma sucinta, pois é realmente difícil escrever sobre o óbvio.  

Quero começar pela estrutura que possibilita a extrapolação dessa história da vida privada para a pública: para que ela possa ser verdadeira é necessário compreender que a economia de uma família opera pelas mesmas regras que a economia de uma nação, o que não é NEM DE LONGE verdade. O que é gasto na esfera privada é investimento no âmbito público. É totalmente falso pensar assim em diversos aspectos e para citar apenas um: diferente de um estado, uma família não pode emitir moeda e tem uma capacidade de endividamento limitada. Se essa alucinação fosse verdadeira, por exemplo, a política americana de recuperação do crash de 1929, o New Deal, teria dado o efeito reverso na década de 1930.  

Repetindo a ideia do ex-presidente Temer a figura da mulher na família heteronormativa é “cuidar das contas” principalmente agindo como aquela que impede o gasto. Naturalizando o lugar da “mãe” como figura de responsabilidade frente aos impulsos que geral alegria, o pai e os filhos acabam sendo menores (no sentindo kantiano). São agentes passivos e não podem ser responsabilizados por nada, pois não é seu lugar, nem próprio deles, tomar esse tipo de decisão. Nos dois cenários essas personagens apenas aceitam as decisões da mulher, ora sofrendo e precavidos, ora gastando e aproveitando. Esses portanto, tadinhos, não podem ter culpa. Sendo esses a sociedade brasileira, aqui temos a ideia, também posta como estrutura discursiva, de minoridade. A velha lógica de “a culpa é do povo brasileiro”, que não tem consciência e se deixar gasta tudo em prazeres mundanos imediatos arruinando seu futuro. Reforça a lógica liberal que justifica a pobreza, atribuindo ao pobre a causa da sua condição: sendo a causa um descuido com a saúde financeira, a farra dos gastos, o imediatismo próprio de uma criança.  

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Sem contar a indicação de uma estrutura discursiva racista. Não consigo parar de pensar que a figura da criança representando o povo brasileiro tem relação com a ideia também apresentada no poema racista de Rudyard Kipling (autor de Mogli), ao descrever os povos não brancos como “crianças-demônios”. Essa estrutura discursiva eurocentrada e racializada que constitui o cerne do projeto moderno europeu calcado no devir negro do mundo, como já analisou Achille Mbembe (mas esse é assunto para outro dia). 

Assim, nesse momento de nossa história, segundo a história hedionda, estamos gastando nossos recursos em futilidades, aguardando a possibilidade de um salvamento através da austeridade de alguém que tenha responsabilidade, nesse caso o bolsonarismo (senão na figura de bolsonaro, pois inelegível, na de seu – até o momento – substituto, governador de São Paulo Tarcísio). Tem muito mais para análise nessa mediocridade, mas me custa muito chafurdar tanto na ignorância. Gostaria apenas de concluir com o óbvio: na construção de uma fábula preconceituosa e baseada em pressupostos morais alheia de qualquer realidade tangível, repetida por flagelados de Darwin que jamais foram tocados pela graça do raciocínio e/ou do pensamento complexo, guiados apenas por ressentimento e rancor, o debate vai se embrutecendo. A necessidade de ter que reafirmar o óbvio cansa e atrasa. Essa ser um dos apitos de cachorro e o ritual simbólico de iniciação de um grupo político relevante no país é um triste sinal da desgraça de nosso tempo. Há 100 anos esse discurso ganhava força justamente como ganha agora, e infelizmente as lições históricas são aterradoras: o fascismo, infelizmente, só foi derrotado em guerras pela força das armas, as articulações e possibilidades dadas pela democracia falharam em conter seu avanço virulento anteriormente, não que seja o caso de repetir a história, mas parece que cada vez mais aprendemos menos com o passado.  

 

Enfim, feliz por estar de volta.  

HÁ BRAÇOS e até a próxima (que espero não demore tanto)