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ABSURDO: “Criança ou adolescente estuprada deve ter o filho com o apoio da família”

ABSURDO: “Criança ou adolescente estuprada deve ter o filho com o apoio da família”

Claudia Weinman
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A vereadora deveria esclarecer como seria esse acolhimento quando o algoz é o pai, o padrasto ou outro familiar, que convive no mesmo ambiente onde a criança ou adolescente foi violentada.

 

Brasil, o país onde as ricas abortam e as pobres morrem.  O país onde os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que os 1% mais ricos ganham 40 vezes mais que os 40% mais pobres. Basta digitar no Google: dados da desigualdade social no Brasil e os números aparecem, fruto de pesquisas, estudos, ciência. É também um país submetido a colonização portuguesa e espanhola, onde os mais de quatrocentos anos de escravidão motivam até hoje a violência e a dor em várias frentes de debate e para esse artigo, separamos o tema da mulher, considerada a primeira escrava da história do mundo. Muito antes dessa palavra existir inclusive, a mulher já era o ser mais oprimido e violentado da face da terra.

Bastariam algumas leituras para que as mulheres e homens da Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste/SC não passassem tanta vergonha, embora por vezes, não estamos discutindo sobre saber ou não saber, mas sobre quem enxerga a vida a partir do conservadorismo que mata, oprime, explora em nome de Deus, Pátria, Família, etc.

Mas para ampliarmos esse tema, é preciso contextualizar a base desse texto. No último dia 27 de junho, a Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste votou a moção de apelo 62/2025, pedindo para que a Câmara dos Deputados dê andamento ao projeto de lei 1904/2024, que versa sobre alteração no código penal e criminaliza o aborto em caso de estupro, se realizado depois de 22 semanas.

Como é de praxe, os nobres edis não leram o projeto de lei que criminaliza o aborto em caso de estupro. Imaginando tratar-se de uma lei antiabortiva qualquer, desataram a falar barbaridades ainda maiores do que as habituais.

A vereadora Silvia Kuhn disse, em outras palavras, que a criança ou adolescente estuprada – “deve ter o filho com o apoio da família” e complementou defendendo que em muitos casos a maternidade permite um salto de maturidade para a mãe. A vereadora deveria esclarecer como seria esse acolhimento quando o algoz é o pai, o padrasto ou outro familiar que convive no mesmo ambiente onde a criança ou adolescente foi violentada. Silvia ainda defendeu que futuramente, a “mãe”, se não quisesse o filho, poderia doá-lo, simplesmente passá-lo para frente, como se fosse uma roupa usada, como se os impactos de uma gestação indesejada não tivesse reflexos físicos e psicológicos na vida de toda uma família, especialmente da criança ou adolescente. Se pode ser pior esse discurso, vale refletir sobre a falta de críticas e análises ao genitor, o ser estuprador.

O vereador Ravier Centenaro defendeu a obrigação de ter o filho, pois segundo ele, “bem ou mal, uma vida foi gerada”. Provavelmente ignora que não há bem num estupro. Existe apenas o mal, violência e dor. Exigir que uma criança de 11, 12, ou 13 anos tenha um filho depois de uma violência dessas, é difícil de compreender.

A vereadora Cris Zanatta resolveu elogiar o grupo pró vida que teria convencido uma juíza grávida do amante casado a não abortar. A vereadora, a juíza e o grupo pró vida deveriam saber duas coisas: 1) não é moralmente aceitável relacionar-se com homem casado; 2) a lei que já existe não permite o aborto nesses casos.

Os 11 vereadores que votaram a favor da moção ignoram que no Brasil, 185 mulheres são estupradas por dia, mais de 67 mil por ano. Estima-se que 30% desses seres humanos são crianças e adolescentes, mais de 20 mil numa conta simples.

O projeto que está na Câmara Federal é tão escandaloso que até a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, pediu para que não fosse adiante. Mesmo assim, os intrépidos vereadores/as fazem pose de moralistas, falam do que não sabem, mesmo que isso aumente a dor que quem já padece pela violência.

Conforme a posição social do abusador e a interpretação do juiz, a vítima que não quiser ter o filho pode pegar uma pena de prisão maior do que o criminoso. É isso que os/as vereadores/as defenderam com tanta ênfase, até em nome de Deus.

É preciso lembrar que a atual legislação proíbe a interrupção da gravidez, sendo permitida em apenas 03 casos:

1) estupro; 2) anencefalia do feto; 3) risco para a gestante.

A alteração que o projeto 1904/2024 busca é estabelecer o limite de 22 semanas para permitir a retirada do feto. Em Santa Catarina houve um caso envolvendo criança de 11 anos tratada como verminose. Isso levou tempo superior às 22 semanas até a gravidez ser descoberta. Qualquer pessoa com o mínimo de empatia pode imaginar o sofrimento de uma criança nessas condições.

NÃO QUESTIONAM O ABUSADOR, A MULHER É QUEM TEM QUE ASSUMIR

“‘ah, mais a mulher com 14, 15 anos de idade, ela não consegue assumir, digamos, a responsabilidade de uma maternidade’. Sim, aí eu penso que novamente, o poder público, de uma forma geral, precisa ampliar uma campanha de sensibilização para que as mulheres se cuidem, hoje nós temos muitas possibilidades para evitar a concepção”. Nitidamente machista, essa fala da vereadora Silvia Kuhn demostra o porque o Brasil possui crianças morrendo por gestações fruto de violência, dor e da naturalização por meio de correntes religiosas sobre esse tema. A fala completa da vereadora ainda dá um destaque para a dificuldade que o homem tem de aceitar um “não”, referindo-se, mais uma vez, ao tema violência como se fosse um ato sexual normal entre duas pessoas, naturalizando e, inclusive, “humanizando” o violador, coisa que nem possível é, mas carrega essa conotação em uma frase tão misógina quanto a própria ação de quem violenta as mulheres.

Outro ponto estarrecedor mencionado pela vereadora é o comparativo sobre o aborto e as drogas. “O aborto é algo semelhante as drogas, se libera um pouquinho , quando vê, tá tudo liberado. Isso é um crime à vida, não foi isso que Deus quis, não foi dessa forma que fomos criados“, defende ela. Mais uma vez, temos a opinião conservadora de uma pessoa que ocupa uma cadeira em cargo público e não dados, não pesquisas, não aprofundamento do tema. Usa-se ao final de tudo, o “argumento” – Deus, para justificar sua fala.

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DEBATE CONDUZIDO POR HOMENS E REPRODUZIDO POR MULHERES CONSERVADORAS

Uma pesquisa importante sobre o tema do aborto encontra-se nos escritos de Bárbara Madruga da Cunha em sua tese de doutorado. Uma matéria divulgada pela Universidade Federal de Santa Catarina trata do estudo da pesquisadora sobre o aborto em casos de estupros no período da Primeira Guerra Mundial. A escolha por esse contexto está motivada, segundo a matéria: “em razão dos inúmeros casos de mulheres violentadas por soldados estrangeiros no período. No Brasil, opiniões médicas sobre o assunto ocuparam matérias de jornal e artigos de revistas especializadas – em um debate conduzido quase que totalmente por homens“.

Além disso, torna-se importante mencionar que, embora conduzido por homens, esse debate sobre o aborto é também reproduzido por um viés absurdamente conservador, que perdura. Na pesquisa de Bárbara, ela cita: “De modo geral, os médicos que se opunham ao aborto baseavam suas posições na ideia de que o amor materno se desenvolveria instintivamente na mulher, nos benefícios da reprodução para a defesa militar e o progresso econômico da nação e na inocência do feto“.

Na mesma linha, a fala da vereadora aponta para um “salto materno”, quando uma menina – criança ou adolescente engravida. O discurso continua sendo hospedado em visões de reprodução defendidas pela religião e um “progresso econômico” onde a mulher é, mais uma vez, instrumento para o chamado progresso, esse que explora, oprime e violenta em nome do acúmulo do capital e de Deus.

Mais uma vez, nos abrigamos em estudiosos sobre o tema para falar sobre a mulher ser alvo e instrumento de exploração em todos os sentidos. mulher na sociedade de classes: mito e realidade” é discutido na obra da teórica Heleieth Saffioti, que amplia a visão sobre gênero, trabalho, para além do mercado capitalista, mas trazendo uma análise profunda sobre nós mulheres, os seres mais marginalizados e periféricos do planeta. A obra de Saffiioti deveria constar nos manuais de homens e mulheres no geral, especialmente de quem ocupa cargos públicos. Primeiro: para ninguém passar vergonha ao falar sobre o que não sabe e segundo, para que ninguém saia correndo do debate, como aconteceu com a própria bancada do Partido dos Trabalhadores em São Miguel do Oeste que, ao invés de sensibilizar para o diálogo, mesmo com as limitações que todos e todas temos sobre o assunto, preferiu levantar-se e deixar que o que existe de mais reacionário e conservador ganhasse tamanho espaço. 

Para finalizar, nosso desejo é de que a moção receba o destino que merece, que é a lata do lixo, mas isso não é suficiente para diminuir a insensibilidade e a desinformação que carrega. Os vereadores e vereadoras fariam melhor se usassem os limites do município para definir seu espaço de atuação.