Comungando esperança: pela liberdade e contra a injustiça
A comunidade Kaingang de Faxinalzinho, na Terra Indígena Kandóia, encontra-se, há mais de dez anos, com o procedimento de demarcação de sua área paralisado. Os estudos circunstanciados de identificação e delimitação foram concluídos, publicados e as contestações – promovidas por terceiros – contra o ato administrativo, acabaram sendo rejeitadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Os Kaingang, desde o ano de 2006, aguardam a publicação da portaria declaratória – atribuição dada pelo Decreto nº 1.775/1996 ao Ministro da Justiça – para, na sequência, realizar a demarcação física e indenização dos ocupantes de boa-fé. O procedimento será concluído com a homologação da terra pelo Presidente da República, para o posterior registro em cartório, caracterizando-a como propriedade da União para usufruto exclusivo dos indígenas.
Luta pela terra

Tudo parecia ser simples, mas não é o que aconteceu naquela comunidade – tampouco em relação ao direito constitucional à demarcação da terra. Atualmente, vivem no Kandóia cerca de 110 famílias. A área ocupada, decorre de uma concessão de uso de parte do governo do Estado do Rio Grande do Sul, mas que é de apenas 04 hectares.
Recentemente, a comunidade decidiu retomar uma ínfima parcela de terra que fica do outro lado da estrada, onde pretendem construir algumas moradias e organizar o plantio de pequenos roçados e de algumas hortas. Pesa sobre a comunidade – em relação a essa retomada – uma ação judicial de reintegração de posse, atualmente submetida ao Sistema de Conciliação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
Vulnerabilização
A vida na aldeia é precária. Não há saneamento básico e as moradias são construídas com tábuas e restos de materiais de construção. Os Kaingang cobram do governo federal a conclusão da demarcação como única forma de assegurar-lhes a terra originária, já que ela permanece ocupada por agricultores que produzem, essencialmente, soja transgênica. As famílias indígenas vivem inseguras naquele pequeno espaço. Não raras vezes foram violentadas em seus direitos fundamentais. O racismo, combinado com variadas formas de intolerância e discriminação, é comum no comércio, na escola, nas ruas e unidades de atendimento à saúde.
Mobilização e Conflito

No ano de 2014, com o intuito de chamar a atenção dos poderes públicos acerca das violências e do abandono a que estavam submetidos, especialmente em decorrência das lutas pela demarcação de suas terras, os Kaingang de toda a região norte do Rio Grande do Sul realizaram diversas mobilizações, bloqueando parcialmente estradas e rodovias.
A reação contrária aos indígenas também se deu de forma articulada, a começar por parlamentares de partidos de direita, que instigavam o conflito – inclusive propondo que os agricultores pegassem em armas para enfrentarem os indígenas, que apenas reivindicavam os direitos inscritos no artigo 231 da Constituição Federal.
Durante um dos bloqueios de estrada, entre os municípios de Faxinalzinho e Erval Grande (RS), houve a tentativa, através de funcionários de criadores de frango – a mando destes -, de desbloquear, mesmo à força, a via. Em decorrência de um ambiente hostil, gerou-se uma briga entre indígenas e aqueles que agiam para promover o desbloqueio da estrada, resultando em pessoas feridas, sendo que duas acabaram indo a óbito.
Criminalização
A Polícia Federal, em decorrência do conflito, abriu inquérito e, de imediato, fez repercutir nas mídias que os indígenas Kaingang de Kandóia eram os assassinos e que todos seriam presos e responsabilizados.
Foram tempos sombrios para a comunidade indígena. A Polícia Federal realizou um intenso movimento de perseguição e tentativa de criminalização, comandado pelo então delegado Mário Vieira. Posteriormente, descobriu-se que ele estava envolvido em estelionatos e apropriação indébita de vultosos valores doados ao acolhimento de pessoas que buscavam por tratamento contra o uso abusivo de drogas – uma fraude para obtenção de dinheiro fácil e farto. O delegado foi investigado e afastado de suas funções.
Prisões
A perseguição, naquele período, resultou nas prisões de cinco lideranças da comunidade. Outros 17 homens da aldeia acabaram indiciados e denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF), que, mesmo sem provas de autoria dos crimes – pois as apresentadas eram forjadas e dissimuladas -, aderiu às teses de culpabilidade apresentadas pelo delegado.
Cinco das principais lideranças da comunidade ficaram injustamente presas durante 42 dias no Presídio Estadual de Charqueadas. Elas obtiveram liberdade graças a um habeas corpus impetrado junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, depois do mesmo ter sido negado pelo TRF4.
Processo injusto

Após a denúncia, mesmo sem provas, houve a pronúncia de dezessete homens – lideranças e pais de família – acusados, por duplo homicídio, ao Tribunal do Júri. Em virtude da precariedade das provas, as defesas dos acusados – Defensores da Defensoria Pública da União (DPU) e a Assessoria Jurídica do Cimi – ingressaram com recursos junto às instâncias superiores da Justiça Federal. Se buscou reverter a flagrante injustiça aos que estavam sendo criminalizados. Além disso, por meio do processo criminal, se pretendia responsabilizar toda a comunidade indígena de Kandóia.
Justiça
Depois de alguns anos de discussões jurídicas, nas quais as defesas dos indígenas interpelaram desembargadores e ministros, o STJ, em dezembro de 2024, decidiu pela anulação, desde sua origem, de todo o processo criminal. O Tribunal fundamentou sua decisão argumentando de que as provas apresentadas – durante o inquérito policial e que depois acabaram sendo sustentadas em primeiro grau, na Justiça Federal de Erechim e no TRF4 – eram inválidas (nulas) porque o reconhecimento dos acusados se deu de forma tendenciosa, com a apresentação de fotografias e os nomes dispostos abaixo de cada um dos acusados. Ou seja, o delegado induzia as testemunhas arroladas a identificar aqueles que desejava incriminar.
Em uma das oitivas, ainda na fase de instrução do processo criminal, uma das testemunhas – depois de afirmar que identificou os indígenas pelas fotografias com os respectivos nomes -, ao ser perguntada se os reconheceria pessoalmente, respondeu que não, porque, segundo ele, “os índios são que nem quero-quero” – uma ave tradicional da região sul do Brasil.
Esperança

O STJ, ao anular o processo criminal contra todos os acusados – desde a investigação, passando pela denúncia e pela pronúncia ao Tribunal do Júri – fez justiça e impôs limites aos que se sentem acima da verdade e do próprio Poder Judiciário.
A Corte reafirmou a necessidade de que os processos judiciais sejam isentos e de que não se busque punir em decorrência de apelo social ou por razões ideológicas, políticas, econômicas, culturais ou racistas. Os Kaingang da Terra Indígena Kandóia, ao longo de mais de dez anos, mantiveram-se unidos nas lutas em defesa de seus direitos e interesses, especialmente por sua dignidade e inocência. Após o trânsito em julgado do processo criminal, as famílias de Kandóia seguirão comungando esperança pela liberdade, contra as injustiças e se fortalecendo na alegria da luta pela terra – ainda que agentes públicos lhes soneguem esse direito fundamental.
Roberto Antônio Liebgott é missionário do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, atuando na região Sul do Brasil.
Coordenação Colegiada do Cimi Sul - Conselho Indigenista Missionário.
