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Governo Lula III: doçura e amargor

Governo Lula III: doçura e amargor

Roberto Liebgott
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O governo Lula III inovou no discurso e na forma de se referir aos povos originários. Trouxe para o cenário da governança lideranças das organizações indígenas e fez promessas de que cumpriria a Constituição Federal demarcando terras. Afirmou ainda que garantiria a implementação de políticas assistenciais, intensificaria a proteção ao meio ambiente e desenvolveria ações alternativas para geração de renda nas comunidades indígenas.

De pronto cumpriu o prometido na campanha eleitoral criando o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), nomeando a indígena Sônia Guajajara para coordená-lo. Na presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pôs Joenia Wapichana, advogada e ex-deputada federal por Roraima, estado onde o genocídio Yanomami parece ter se naturalizado.

Depois dos cem dias de governo, notou-se que a doçura no trato das questões indígenas cedeu lugar ao amargor da política.

A estrutura ministerial, montada tão somente a partir dos discursos, acabou fragilizada pela falta de recursos orçamentários e ausência de um plano de ação. E, na sequência dos dias, foi sendo atropelada e deslegitimada, por dentro e por fora do governo, retirando-se do MPI a sua principal atribuição: a de analisar os procedimentos de demarcações das terras e declará-los como válidos ou não através de portarias específicas.

No âmbito das políticas públicas assistenciais verifica-se, depois de seis meses, pouca efetividade e quase nenhuma mudança em relação ao ano de 2022.

Nas comunidades que vivem nas margens, ou seja, do lado de fora de seus territórios originários – realidades típicas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul e em praticamente todos os estados do Nordeste –, persiste o processo de vulnerabilização através da omissão comissiva e da negligência da União. Nelas não há água potável, coleta de lixo, espaço de lazer, escolas, postos de atendimento à saúde, não há terra e falta o alimento de cada dia. E, o mais doloroso, não se percebe, neste tempo que era de esperanças, qualquer plano de ação emergencial com o objetivo de responder a essas situações degradantes.

Há, por outro lado, as questões próprias das terras demarcadas ou das reservas indígenas nas quais, em síntese, se poderia implementar ações de proteção e de fiscalização e programas que viabilizem o usufruto das terras pelos povos. Mas, neste período de meio ano de governo, não se observa de forma concreta, a médio prazo, programas eficazes de gestão dos territórios, de seus recursos e de enfrentamento aos arrendamentos criminosos. Ainda, não se identificam investimentos para a qualificação dos serviços em saúde, educação e prevenção de conflitos. Há, de fato, ações pontuais em relação às tentativas de retirada de garimpeiros das terras Yanomami, em Roraima, e Munduruku, no estado do Pará, mas elas não compõem as soluções para as distintas realidades indígenas. Com o objetivo de atacar a origem do problema, que são os financiadores e agressores dessas terras, o governo Lula enviou um projeto de lei, 3935/2023, ao Congresso Nacional, mas a essa proposição legislativa não será dada a urgência necessária. E, possivelmente – se for apreciada e aprovada pelos parlamentares – sofrerá drásticas alterações.

No que tange à política de Educação Escolar Indígena, não se notou, ao menos no cotidiano das comunidades, a execução de uma política vinculada aos territórios etnoeducacionais. Ou seja, tudo permanece sob a responsabilidade de estados e municípios, sem vínculo organizacional com o Ministério da Educação, que deveria promover a articulação e a gestão do sistema educacional, tendo como referência as diferenças linguísticas, étnicas e culturais.

Na atenção à Saúde Indígena, vivemos tempos ainda mais inseguros. Presencia-se até o momento o vai e vem de propostas e teses que distorcem o subsistema de atenção à saúde indígena, como a terceirização – em vigor desde 1999 – e a municipalização, que sempre é cogitada e, agora, se retoma a famigerada proposta do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), que configura a derrota das lutas históricas do movimento indígena por uma eficaz política de saúde, tendo por base os Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena com autonomia administrativa. O INSI vincula-se ao modelo assistencial a partir de empresas de saúde, na lógica da privatização. Esse modo de operar rompe com a universalização do SUS, retira do Estado a responsabilidade pela gestão, destinando-a a terceiros, especialmente a empresários ligados à exploração da saúde pública. Além disso, compromete o controle social e destina –parcial ou totalmente – as ações e serviços a quem pretende ganhar dinheiro e lucrar fortunas com as doenças dos indígenas.

Nos ambientes da governança, de todos os problemas existentes em relação aos direitos indígenas, as demandas fundiárias são as mais urgentes. A não demarcação de terras, represadas nos últimos quatro anos, causaram e continuam a causar o impacto de maior dano, tanto aos territórios, devastados e invadidos, como às comunidades que se encontram, às centenas, em beiras de rodovias, em acampamentos sem nenhum tipo de política pública básica.

O governo Lula III se comprometeu com o chamado “revogaço” de medidas que inviabilizam demarcações de terras, a exemplo de instruções normativas da Funai e do Parecer 001/2017, da Advocacia Geral da União (AGU). Pouco se fez e o Parecer 001/2017 da AGU só teve seus efeitos suspensos por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). A AGU resiste em mudar seu posicionamento, inclusive no Recurso Extraordinário de repercussão geral que trata do marco temporal.

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As demarcações de terras prometidas – 13 homologações, dezenas de grupos de trabalho e portarias declaratórias – pouco avançaram. Houve apenas a homologação de seis terras, a publicação do relatório de identificação e delimitação de outras duas e a retomada de alguns grupos de trabalhos da Funai. As poucas medidas não tiveram efeitos práticos, visto que terras continuam invadidas, ações de desintrusão pouco avançaram e não foram adotadas medidas para o pagamento de indenizações das benfeitorias de boa-fé de ocupantes não indígenas. Em resumo, os povos originários continuam sob intensa pressão social, política e econômica. As ameaças contra as comunidades continuam a ocorrer, a exemplo do que se observa na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas.

Em âmbito nacional, os setores anti-indígenas se rearticulam amplamente e impõem suas pautas contra os direitos indígenas, a exemplo da urgência na votação do PL 490/2007, aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados e agora em discussão no Senado Federal.

No STF, o julgamento do RE 1.017.365, de repercussão geral, através do qual se discute a tese do marco temporal e o indigenato – direitos originários dos povos –, foi retomado com o voto vista do ministro Alexandre de Moraes, que decidiu pela inconstitucionalidade da tese genocida; mas, na sequência, um novo pedido de vista, agora do ministro André Mendonça, interrompeu o julgamento pela terceira vez.

Enquanto tudo isso ocorre, percebe-se na Casa Civil – instância da Presidência da República responsável por intensas negociações políticas – o represamento ou devolução de procedimentos demarcatórios de terras indígenas que há décadas foram concluídos. As pautas indígenas e quilombolas incomodam inúmeros segmentos da política – direita, centro e extrema direita – e o governo, gerando um ambiente de negociações no qual as demarcações são postas sobre a mesa como temas a serem barganhados, prática que compromete a defesa e garantia dos direitos dos povos originários e das comunidades tradicionais. O governo, em geral, cede para atender a interesses das bancadas do boi, da soja e da mineração.

Neste contexto de profundas adversidades, a doçura dos discursos e das promessas de campanha, materializados na solenidade de posse, em dia 1º de janeiro, na rampa das diversidades, vão dando lugar ao amargor das decisões, ou da falta delas, que retardam a retomada das demarcações e o desenvolvimento de uma política indigenista eficaz e responsável.