Quem são os estranhos do mundo?
O inglês Thomas Hobbes, que foi um viajante do século XVII, quando completou 63 anos, publicou uma obra e deu o título de Leviatã, no capítulo IV, descreveu o papel e o funcionamento da linguagem. Segundo ele, a linguagem compreende o esforço humano em passar o que temos no intelecto para um discurso verbal. Disso resulta, a habilidade humana de buscar definições, nomes para designar pessoas, coisas e sentimentos. Nessa atividade frequentemente são cometidos abusos, por isso o senhor Hobbes descreveu que o ser humano é um único ser capaz do absurdo, já que entramos em contradição com facilidade.
Na busca por definições aparece uma atividade correspondente ao processo de identificação, o que sugere a seguinte pergunta: o que é identificar? Se buscarmos no dicionário, o verbo identificar pode ser definido como determinar ou reconhecer a natureza de algo, buscar a identidade de alguém, tomar consciência da existência. Essa definição quando aplicada aos objetos tende ser mais fácil para a capacidade humana de representação e de abstração, pois uma mesa não apresenta grandes problemas no que se refere a sua definição, mas se tratarmos no valor que atribuímos, é bela ou feia, já teremos maiores dificuldades, por se tratar de juízos de valores, qualificações atribuídas as coisas, as pessoas e ao mundo.
Quando buscamos identificar as sensações, os sentimentos e as pessoas são apresentados algumas limitações. Em geral, quando falamos de alguém destacamos a aparência, como faríamos ao definir um objeto, mas não é suficiente, afinal pessoas não são coisas. A dificuldade resulta do fato do ser humano pertencer a um predicado, uma categoria, isto é, de seres pensantes, o que revela uma consciência, que contém representações racionais, mas não exclusivamente, uma vez que o ser humano é definido por sentidos e por dar sentido e significado. Por esse motivo, a identidade de alguém está ligada à sua forma de pensar, agir, até mesmo de valores, o que pressupõe uma dimensão moral do ser. Por isso, o ser humano não é definido por existir, ter pernas e braços, mas por pensar, ter valores que dizem que algo é correto ou não. Se definimos alguém por sua aparência, em geral temos uma definição que fica na superfície, indicamos uma percepção social do belo e do feio aplicadas às pessoas, uma perspectiva reducionista, para não dizer vazia, mostrando a fragilidade do intelecto daquele que faz tal julgamento. No entanto, ainda é pouco para dizer sobre a identidade de um ser humano, persistindo uma questão que é difícil de ser definida na totalidade, isto é, quem somos?
Na possibilidade de usarmos o termo identificar como determinar ou encontrar a natureza de um ser, surge a questão: qual é a natureza ou essência da humanidade? Para complicar, é possível ter uma definição estática? Os seres humanos mudam, não somente na aparência, mas também nas percepções, até mesmo a sua consciência. Como diria o filósofo Heráclito “não é possível banhar-se no mesmo rio duas vezes”, pois as águas do rio não serão mais as mesmas e nem o sujeito. Tudo está em constante mudança, embora nem sempre estamos dispostos ou somos capazes de perceber. Por isso, seria possível afirmar que não somos mais aqueles que já fomos um dia. Todavia, as experiências são importantes para a definição e percepção do nosso eu, que já não é mais o mesmo. Sobre o que ser humano é, não serve de base para qualificar como será, ou seja, sobre o futuro encontramos somente conjecturas. Como vários filósofos já disseram, sobre o amanhã não temos e nem se quer sabemos se estaremos, mas o ser humano pode dar sentidos para as suas vivências, tornando-as significativas para edificação do seu ser, o que poderá ser muito importante, de fato, no seu futuro, para isso a diferença tem a necessidade estar contidas em verbos que expressem o presente e não o futuro, por mais contraditório que pareça.
A linguagem é constituída de vários conceitos, nomes, como diria o senhor Hobbes, que são aceitos por convenções e não isoladamente. Essa constatação sugere que a definição que temos do eu não pode ser reduzida a si, pois do contrário estaríamos cometendo o mesmo erro de Narciso da mitologia grega, que se apaixonou por sua imagem e se afogou nas águas que espelhavam o seu ser. O ser humano vaidoso tem a tendência de mergulhar na imagem de si mesmo e quando descontente passa odiar o seu próprio ser ou perseguir o que não existe. Como diz o ditado popular, o amor se converte em ódio. Nesse caso, o problema é maior, pois não houve amor, para amar é necessário sair da superfície e mergulhar nas profundezas do ser.
Portanto, a vaidade, não é meramente um vício, talvez possa ser comparada a um veneno, por colocar o “eu” no centro e ignorar os outros e, inevitavelmente, a si mesmo. Eis a receita de um convite moderno para o sentimento de ausência, de esvaziamento do ser. Nesse caso, status social, sucesso não indicam a identidade, apenas a posição, não o caminho e muito menos quem somos. Então fica a pergunta, como encontrar a nossa essência ou ser? Para ajudar o pensamento a encontrar as respostas, o filósofo Emmanuel Levinas descreveu que a definição de um ser humano se encontra na forma como nos relacionamos com as pessoas e com o mundo. Seguindo essa perspectiva, o modo como as pessoas se relacionam com os outros é o que as definem, isto é, somos definidos na relação.
No caso de Inaiê e Ulisses, temos nomes, as suas essências ainda estão por vir, pois são as relações que os definem. Por ora, esses personagens são os estranhos que desmaiaram no centro de uma cidade. Quando foram socorridos por um senhor com aproximadamente 40 anos, chamado Roberto Apolíneo. Esse senhor poderia ser apenas mais um que Inaiê e Ulisses encontram, como ocorre quando encontramos pessoas, conhecemos o nome, são conhecidos do trabalho, da escola, do bairro e assim por diante. Entretanto, a grande parte das pessoas não têm a oportunidade de conhecer o outro e a si mesmas, já que para isso é necessário transcender a individualidade para encontrar a própria identidade, já que o conhecimento de si mesmo ocorre nas relações, a superficialidade não leva ao cerne do ser. Roberto conseguiu, através de um gesto solidário, romper a barreira de si mesmo, revelando uma possível definição de humanidade. Todavia, Roberto é um viajante e mais um estranho no mundo ou seria do mundo? Surge então a questão, como chegamos a definição da estranheza?
O mundo dos estranhos surgiu muito antes de Inaiê e de Ulisses, foi consequência de um conjunto de relações estabelecidas no universo do que chamamos de mundo humano. A estranheza indica uma negação, que é produto das relações, apresenta uma forma de julgar seres que não fazem parte de uma ordem. Em determinados tempos, a estranheza ganha força e é capaz de romper com uma visão de mundo. Diante disso, surge a questão: o que ocorre com o rompimento de uma visão que determina a forma de julgar e agir no mundo? Em muitas situações, o mundo das relações se enche de força e de violência para buscar reprimir o que o amedronta.
Quando Inaiê e Ulisses gritaram desesperados e desmaiaram não causaram comoção, mas medo. Para isso, muitas formas de responder são dadas, algumas correspondem a omissão, outras a perseguição, a violência física, violência emocional, enfim todas as formas para repulsar o que se considera um perigo eminente. No caso dos nossos personagens, eles romperam com a ordem do dia. Tudo estava perfeito, havia uma estética do caminhar que foi rompida por um novo padrão, uma sonoridade e linguagem corporal que representou uma ruptura. Houve apenas uma pessoa capaz de chegar perto, outro viajante, que os acolheu na sua passagem.
Para surpresa de Inaiê e de Ulisses, quando seus corpos ganharam ânimo, acordaram em um pequeno restaurante, com um estranho que os resgatou da rua, pagou um café e naquele dia três estranhos conversaram por um grande tempo, uma relação foi estabelecida, aos poucos começaram a se conhecer, com o diálogo partiram ao encontro de suas definições. Novamente o despertar do pensamento surgiu, não isoladamente, não ignorando as paixões e sentimentos, ao contrário, revestiu-se com toda força em uma nova relação. A viagem em busca da humanidade estava só começando, foi quando Roberto ofereceu-se para ir junto nessa jornada.
Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.