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“Se eles não nos deixam sonhar, a gente também não os deixa dormir”.

“Se eles não nos deixam sonhar, a gente também não os deixa dormir”.

Cimi Sul
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Havia sobre o governo Lula III uma enorme expectativa em relação à garantia dos direitos indígenas. Os povos, os aliados da causa, organismos nacionais e internacionais, instituições das mais diferentes denominações vinculadas aos direitos humanos, confiavam nas boas intenções anunciadas – antes e durante a posse.

Como prometido, foi criado o Ministério dos Povos Indígenas e apresentou-se uma série de arranjos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), compondo os órgãos com lideranças indígenas ou pessoas de sua confiança, para, finalmente, executar políticas que atendessem às necessidades e aos direitos, há tantas décadas negados.

Pois bem, o tempo avança muito apressadamente e os caminhos se fecham densamente. Não se vislumbram alterações significativas no cotidiano das vidas indígenas. As terras, tão desejadas, sonhadas, ancestralizadas, rezadas e cuidadas, permanecem no limbo, à espera por demarcações. E as áreas demarcadas continuam, abusadamente, invadidas, deterioradas e consumidas pelos mercadores do ouro, do boi, da soja, da madeira, dos minérios, das barragens, do carbono e das inúmeras outras formas de esbulho e destruição.

E para piorar o drama da espera, as dores não cessam. Matam, agridem, ameaçam e segue-se a desassistência como marca estampada nos corpos e territórios. Em Roraima, o drama da invasão de garimpeiros persiste e eles continuam devastando e assassinando. As realidades de fome, desnutrição, malária e tuberculose são uma constante. Em Mato Grosso do Sul, permanece o drama de comunidades vivendo em minúsculos pedaços de terra, ou à beira de rodovias. E não vemos, no âmbito do governo federal, iniciativas no sentido de mudar essa realidade, assumindo que os povos têm direitos constitucionais e que estes não podem ser relativizados ou negociados. Ou seja, é necessário superar a fase das promessas, das boas intenções, dos sorrisos e dos discursos para estrangeiro ver.

O presidente Lula, por exemplo, em discurso proferido aos ruralistas de Mato Grosso do Sul, onde também estava o governador Riedel, disse que é preciso recuperar a dignidade dos Guarani que vivem na beira da estrada – lá perto de Dourados – mendigando terra, direito e liberdade. E para dar uma solução a esse problema, o presidente propôs ao governador Riedel, que entre eles se faça uma sociedade. Pediu ao governador que ele encontre fazendas que possam ser compradas e que ele, Lula, pagaria por elas e as destinaria aos indígenas.

Com esse discurso, Lula se coloca como alguém com posses ou poder para, de forma solidária, recuperar a dignidade daquela gente Guarani, que vive na beira da estrada mendigando terra, direito e liberdade. O “nobre gesto” se concretizaria mediante uma sociedade com os ruralistas que governam Mato Grosso do Sul.

Esse filme já passou outras vezes. Essas falas – falaciosas – já ocorreram entre os de cima da pirâmide. Mas nunca houve a tal compra de fazendas e não retiraram os Guarani da beira de estradas. Ao contrário, deixam morrer, assim como morreu a líder Damiana, do Apikay.

O presidente da República parece não entender que direitos não são negociáveis, não são comprados. Ele não entende, ou sequer sabe o que significa terra, território, tekó e tekohá para os Guarani. Ele acredita mesmo que os discursos entre os ricos e poderosos trará uma solução aos Guarani e aos demais povos indígenas?

Presidente Lula, as comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul reivindicam terras ancestrais, terras onde seus antepassados estão enterrados. E não abrem mão delas. Presidente, as comunidades indígenas requerem ínfimas parcelas de terras do daquele Estado. Mas, Vossa Excelência sabe que não há, da parte dos ruralistas, nenhuma intenção em ver as comunidades nos seus territórios demarcados.

Presidente Lula, lembremos o que disse Eliseu Guarani-Kaiowá: “No Mato Grosso do Sul, o boi vale mais que uma criança indígena, o pé de soja vale mais que o pé de cedro”. Mas, lembremos também do seu aviso: “Se eles não nos deixam sonhar, a gente também não os deixa dormir”.

No fundo, Lula sabe, ou deveria saber, que a proposta de compra de terras dá sustentação aos fundamentos da Lei 14.701/2023 – do marco temporal e da exploração indiscriminada das terras indígenas. Lula sabe que esse discurso será lido como um sinal positivo pelos ruralistas a pressionarem os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que não se apressem em julgar as ações que pedem a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023.

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Precisamos também nós, apoiadores e apoiadoras da causa indígena, incidir, sem cessar, junto ao STF para que julgue a lei genocida do marco temporal. E precisamos criticar, devemos protestar e dizer que esses arranjos com a bancada ruralista matam, assim como mataram a Damiana que vivia na beira da estrada, perto de Dourados.

Devemos lembrar e enfatizar que os ministros da Suprema Corte do país já julgaram como inconstitucional a tese do marco temporal. Que eles, numa ampla maioria, deram legitimidade ao indigenato – sustentando os argumentos de que os povos indígenas, primeiros habitantes destas terras, são originários, portanto, os direitos deles a terra e ao seu usufruto devem ser apenas declarados (Art. 231 da CF/1988), porque são pré-existentes, ou seja, existiam antes dos colonizadores chegarem com suas espadas, cruzes, doenças e ambição.

Urge, portanto, que o Supremo Tribunal Federal tome para si, outra vez, o dever de solucionar a discussão jurídica relativa ao marco temporal, declarando a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, dando à administração pública a segurança necessária para exercer seus serviços e a garantia aos povos indígenas de que poderão continuar sendo amparados pela Constituição Federal, sem subterfúgios e ou falsas soluções compensatórias aos seus direitos fundamentais.

Porto Alegre (RS) e Chapecó (SC), 15 de abril de 2024.

Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima
Missionários leigos do Cimi Sul e advogado.