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Se eu tenho medo de ser mãe?

Se eu tenho medo de ser mãe?

Claudia Weinman
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Estava filmando a Jussara quando ela me fez lembrar de coisas importantes. Já era novembro de 2022, em Luziânia, Goiás. Todo mundo ansioso/a para a mudança de governo no Brasil.

Naquele mês, a mulher de sobrenome Rezende foi homenageada no congresso celebrativo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário em que contribuímos na cobertura jornalística. Junto com outras tantas, que formavam aquela linha comprida e horizontal na plenária, a Jussara finalmente falou.

A admirei, ainda quando sua referência soava nas palavras de outra companheira, a Jô Pinheiro. Jussara é um nome feito agulha de formar ponto, mas de relações. Tivemos encontros por vários momentos e em novembro foi diferente. Eu esperava ouvir sobre o que ela tinha feito nos primeiros anos de luta, aprendido, vivenciado desde que decidiu pelos difíceis. Disposta a conhecer a Amazônia de um modo mais profundo na época, mergulhado nas culturas indígenas, Jussara se preparou para a missão e logo descobriu a gravidez.

Eu me concentrei para escutá-la sobre isso. Tudo o que pensei quando descobrimos a gestação foi: e agora? Será que teremos condições financeiras? Será que, na perspectiva do nosso trabalho independente, conseguiremos projetos? E as viagens a trabalho, como serão?

Para a mulher da classe trabalhadora explorada essas questões fazem muito sentido. Para o homem operário também. Para as mães e pais de primeira viagem, mais ainda.

Mas a Jussara disse uma frase que lhe foi presenteada pelo pe. Lothário Thiel há alguns anos. “É possível” – o redirecionamento das tarefas, do tempo vida e dos projetos.

Ela declarou aquilo e entregou-me sem saber. Jussara conheceu e tornou-se referência junto a luta dos Guarani no Sul do país, também dos Kaingang e Xokleng. As crianças que vieram com ela caminharam nas terras invadidas pela Itaipu Binacional, também pelo território Araça’í e outros tantos.

Eu acho que a Jussara, em algum momento, sentiu medo e eu a admiro por isso. As mães sentem medo e esse texto é sobre mães, mulheres e medos.

Sempre escrevo sobre a minha mãe e outras como Jussara, de nomes pouco ouvidos, falados, lembrados. Então pensei que seria importante juntar nessa narrativa uma mãe que vemos desde aqueles rios amazônicos que congelam em sangue e miramos no Sul do país através do céu-mundo vermelho, registrado nas fotos postadas com beleza nos entardeceres. Ali tem uma mãe corajosa e destruída por dentro chamada: socorro. Eu aposto que essa mãe também carrega seus medos: a terra teme, treme, sente.

Quando penso nela, me bate o medo baseado em coisas que temos visto: de ser essa mãe que abraça uma árvore e a beija declamando poesias não suas, para dizer-lhes o quanto é linda, mas que não sente nada, não faz nada, não se mobiliza e a vida morre num abraço sem vivências e ternuras. Medo também de perder-me num sagrado que valoriza o ventre e despreza os corpos de outras que enxergam a gestação da vida diferente, que talvez não a queiram, não a possam, não a desejam assim.

Não tenho no hoje mais medo de tornar-me esse ser estúpido. Mas temo pelas mães que assim o são e que se banham nas águas das cachoeiras e saem dizendo que são livres, porque deixaram de usar o sutiã, fechando seus olhos para o que realmente oprime a mulher da classe trabalhadora explorada, dentro de uma lógica de sistema que tem na sua raiz formativa, o machismo, o racismo, a exploração, a violência contra a mulher.

Todos os dias quando entro no banheiro de casa e vou me despindo para o banho, lembro daquela mulher Kaingang do Kandóia, que em um dos invernos mais gelados de nosso estado, apresentava seu corpo praticamente nu a um tanque de água absurdamente fria. Aos poucos, aquela senhora de idade superior aos 80, levava duas mãos até o peito, apresentando ao corpo a nova temperatura. Entre os dedos escorria uma história de sofrimentos, de partos, de filhos e filhas que se tornaram mães e pais. Eu via em cada gotinha de água que era devolvida ao velho tanque, uma nova forma de perceber a vida. Ali estava uma mãe banhando-se em água contaminada pela plantação de soja transgênica que invadia sua aldeia e sobre os meus olhos um apontamento se construía, gritando a besteira que se faz hoje em dia, quando se adora uma flor, uma horta e se esquece da rebeldia.

Quando sentamos ao redor da mesinha da cozinha, naquele também inverno, mas de 2019, e construímos um outro olhar do Sul que originou o disco do Pedro, meu companheiro, o outro também chamado Pedro, mas de sobrenome Munhoz, ajeitou o que aprendi com as companheiras sobre Flora Tristan que mencionava a realidade da mulher proletária do proletário. A mais explorada, condenada se fosse mãe, condenada se não fosse, violentada por ser considerada uma nada em casa, agredida se tivesse um trabalho na fábrica. De todo modo, para essas mulheres feito a gente, nunca houve paz, respeito ou sinais de dignidade, a não ser pela luta coletiva e organizada.

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Eu tenho medo de ser mãe sim, porque eu sei que é difícil, porque uma criança doente não tem vontade de viver a vida, uma mãe oprimida sobrevive cansada, um pai operário também teme pela sua família.

Eu me pego pensando na vontade que tenho de ver o Pedro acordando de madrugada, para erguer o cobertor da nossa criança, colocando-o mais abaixo do queixo e conferindo se está tudo bem. É só um desejo, pensando no que o meu pai fazia, quando eu fingia dormir e deixava a coberta cair, para sentir essa alegria. Naquelas madrugadas o amor andava sozinho pela casa, e quando eu menos esperava o danado se enrolava na cama e se bagunçava no chão até meu pai o encontrar. Então, nós dois fingíamos o sono perfeito para que meu velho se aproximasse.

Tenho medo de ser mãe, preocupada, ocupada, de olho sempre. Quando foi mesmo que aprendi a ser assim? – com os seres humanos, talvez, com quem olha para o outro, para a outra e pergunta se a barriga está cheia, se existe um lar para se abrigar. Minha mãe com mais de 60 ainda tem medo de ser a mãe de seus filhos e filha.

São medos que despertaram a luta de Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Alexandra Kollontai, Heleieth Saffioti, Clara Zetkin, que são presença no dia a dia de nossas mães, avós, companheiras e que alimentam a coragem. Aqui em casa mora uma mãe e um pai que vão juntando seus medos para abrir caminhos na noite escura.

Você teve medo de ser mãe? – Foi a pergunta que fiz para Jussara, cuja resposta segue guardada no meu coração. O retorno dela se deu num abraço carinhoso, como quem já sabe o que me torna aflita e prepara com ternura, o terreno da gente para a vida.

Que os medos nos guiem também, alimentados pela esperança de construir vidas bonitas.