Com quais argumentos?
Nós nascemos de duas mães, a Terra e a Mulher.
Somos sementes do amor gerado em seus ventres.
Sempre estivemos aqui, corríamos pelos campos, florestas e ríamos muito.
Banhávamos nos rios e lagos de águas limpas e cristalinas.
Subíamos nas árvores, colhíamos seus frutos e cantávamos com as aves.
Vocês, milhares de anos depois, chegaram de forma hostil e cruel.
Seus olhos sempre estavam cheios de ódio e as mãos sujas de sangue.
Portavam cruzes, correntes e espadas, com as quais nos perseguiam.
Queriam nossos corpos dóceis e nossas almas presas a vocês.
Nos tomaram como escravos e nossas mães foram abusadas e violentadas.
Saqueavam tudo que estava ao alcance e nossa terra acabou fatiada e cercada.
Cortaram, arrancaram, despedaçaram, envenenaram e mataram.
Tudo em vocês tinha, e ainda têm, odor de morte e maldição.
Vocês são insensíveis, sem qualquer compaixão, inclusive pelos seus.
Cospem na mãe, a maltratam sem pudor porque são predadores.
E, mesmo depois dos séculos, resistimos a vocês, não nos destruíram, apesar dos massacres.
E vocês continuam com o mesmo desprezo, invadem e aniquilam nossos refúgios.
Criam leis, depois revogam, em seguida forjam outras, porque sempre querem mais.
Tornam os governos marionetes de suas ambições e eles, todos eles, se alinham ou se associam a vocês.
Nos ofendem, nos tratam como estrangeiros, como se fossemos nós os invasores.
Queimam nossas casas de Reza, ignoram nossas histórias e, racistas que são, desumanizam nossa existência.
Entre vocês, negociam nossos direitos fundamentais para tomar a terra, o pouco dela que ainda se mantém viva, graças a nós, seus filhos.
Vocês são dissimulados, nos convencem de que querem o bem, mas depois arrancam nossos direitos da Constituição Federal, feita por vocês mesmos.
Em suas reuniões e festinhas debocham e ridicularizam de nossos modos de ser, de nossas falas, valores, crenças e culturas.
E, ao fim de tudo, usam, para nos matarem – um pouco a cada dia – os mesmos argumentos de sempre: desenvolvimento e governabilidade.
Nós seguiremos, apesar de vocês, com vocês ou contra vocês, lutando em defesa da vida da Mãe Terra, em defesa de nossas histórias, de nossas memórias, de nossas filhas, filhos e do futuro.
Não a Lei do Genocídio 14.701/2023, não ao marco temporal e demarcação já!
Porto Alegre (RS), 20 de abril de 2024.
Roberto Liebgott
Cimi Sul – Equipe Porto Alegre.
Texto inspirado no testemunho de José Vergueiro, liderança Kaingang do Rio Grande do Sul, sobre o contexto atual.
Roberto Antônio Liebgott é missionário do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, atuando na região Sul do Brasil.