ABSURDO: “Criança ou adolescente estuprada deve ter o filho com o apoio da família”


A vereadora deveria esclarecer como seria esse acolhimento quando o algoz é o pai, o padrasto ou outro familiar, que convive no mesmo ambiente onde a criança ou adolescente foi violentada.
Brasil, o país onde as ricas abortam e as pobres morrem. O país onde os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que os 1% mais ricos ganham 40 vezes mais que os 40% mais pobres. Basta digitar no Google: Dados da Desigualdade Social no Brasil e os números aparecem, fruto de pesquisas, estudos, ciência. É também um país submetido a colonização portuguesa e espanhola, onde os mais de quatrocentos anos de escravidão motivam até hoje a violência e a dor em várias frentes de debate e para esse artigo, separamos o tema da mulher, considerada a primeira escrava da história do mundo. Muito antes dessa palavra existir inclusive, a mulher já era o ser mais oprimido e violentado da face da terra.
Bastariam algumas leituras para que as mulheres e homens da Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste/SC não passassem tanta vergonha, embora por vezes, não estamos discutindo sobre saber ou não saber, mas sobre quem enxerga a vida a partir do conservadorismo que mata, oprime, explora em nome de Deus, Pátria, Família, etc.
Mas para ampliarmos esse tema, é preciso contextualizar a base desse texto. No último dia 27 de junho, a Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste votou a moção de apelo 62/2025, pedindo para que a Câmara dos Deputados dê andamento ao projeto de lei 1904/2024, que versa sobre alteração no código penal e criminaliza o aborto em caso de estupro, se realizado depois de 22 semanas.
Como é de praxe, os nobres edis não leram o projeto de lei que criminaliza o aborto em caso de estupro. Imaginando tratar-se de uma lei antiabortiva qualquer, desataram a falar barbaridades ainda maiores do que as habituais.
A vereadora Silvia Kuhn disse, em outras palavras, que a criança ou adolescente estuprada – “deve ter o filho com o apoio da família” e complementou defendendo que em muitos casos a maternidade permite um salto de maturidade para a mãe. A vereadora deveria esclarecer como seria esse acolhimento quando o algoz é o pai, o padrasto ou outro familiar que convive no mesmo ambiente onde a criança ou adolescente foi violentada. Silvia ainda defendeu que futuramente, a “mãe”, se não quisesse o filho, poderia doá-lo, simplesmente passá-lo para frente, como se fosse uma roupa usada, como se os impactos de uma gestação indesejada não tivesse reflexos físicos e psicológicos na vida de toda uma família, especialmente da criança ou adolescente. Se pode ser pior esse discurso, vale refletir sobre a falta de críticas e análises ao genitor, o ser estuprador.
O vereador Ravier Centenaro defendeu a obrigação de ter o filho, pois segundo ele, “bem ou mal, uma vida foi gerada”. Provavelmente ignora que não há bem num estupro. Existe apenas o mal, violência e dor. Exigir que uma criança de 11, 12, ou 13 anos tenha um filho depois de uma violência dessas, é difícil de compreender.
A vereadora Cris Zanatta resolveu elogiar o grupo pró vida que teria convencido uma juíza grávida do amante casado a não abortar. A vereadora, a juíza e o grupo pró vida deveriam saber duas coisas: 1) não é moralmente aceitável relacionar-se com homem casado; 2) a lei que já existe não permite o aborto nesses casos.
Os 11 vereadores que votaram a favor da moção ignoram que no Brasil, 185 mulheres são estupradas por dia, mais de 67 mil por ano. Estima-se que 30% desses seres humanos são crianças e adolescentes, mais de 20 mil numa conta simples.
O projeto que está na Câmara Federal é tão escandaloso que até a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, pediu para que não fosse adiante. Mesmo assim, os intrépidos vereadores/as fazem pose de moralistas, falam do que não sabem, mesmo que isso aumente a dor que quem já padece pela violência.
Conforme a posição social do abusador e a interpretação do juiz, a vítima que não quiser ter o filho pode pegar uma pena de prisão maior do que o criminoso. É isso que os/as vereadores/as defenderam com tanta ênfase, até em nome de Deus.
É preciso lembrar que a atual legislação proíbe a interrupção da gravidez, sendo permitida em apenas 03 casos:
1) estupro; 2) anencefalia do feto; 3) risco para a gestante.
A alteração que o projeto 1904/2024 busca é estabelecer o limite de 22 semanas para permitir a retirada do feto. Em Santa Catarina houve um caso envolvendo criança de 11 anos tratada como verminose. Isso levou tempo superior às 22 semanas até a gravidez ser descoberta. Qualquer pessoa com o mínimo de empatia pode imaginar o sofrimento de uma criança nessas condições.
NÃO QUESTIONAM O ABUSADOR, A MULHER É QUEM TEM QUE ASSUMIR
“‘Ah, mais a mulher com 14, 15 anos de idade, ela não consegue assumir, digamos, a responsabilidade de uma maternidade’. Sim, aí eu penso que novamente, o poder público, de uma forma geral, precisa ampliar uma campanha de sensibilização para que as mulheres se cuidem, hoje nós temos muitas possibilidades para evitar a concepção”. Nitidamente machista, essa fala da vereadora Silvia Kuhn demostra o porque o Brasil possui crianças morrendo por gestações fruto de violência, dor e da naturalização por meio de correntes religiosas sobre esse tema. A fala completa da vereadora ainda dá um destaque para a dificuldade que o homem tem de aceitar um “não”, referindo-se, mais uma vez, ao tema violência como se fosse uma relação sexual normal entre duas pessoas, naturalizando e, inclusive, “humanizando” o violador, coisa que nem possível é, mas carrega essa conotação em uma frase tão misógina quanto a própria ação de quem violenta as mulheres.
Outro ponto estarrecedor mencionado pela vereadora é o comparativo sobre o aborto e as drogas. “O aborto é algo semelhante as drogas, se libera um pouquinho , quando vê, tá tudo liberado. Isso é um crime à vida, não foi isso que Deus quis, não foi dessa forma que fomos criados“, defende ela. Mais uma vez, temos a opinião conservadora de uma pessoa que ocupa uma cadeira em cargo público e não dados, não pesquisas, não aprofundamento do tema. Usa-se ao final de tudo, o “argumento” – Deus, para justificar sua fala.
DEBATE CONDUZIDO POR HOMENS E REPRODUZIDO POR MULHERES CONSERVADORAS
Uma pesquisa importante sobre o tema do aborto encontra-se nos escritos de Bárbara Madruga da Cunha em sua tese de doutorado. Uma matéria divulgada pela Universidade Federal de Santa Catarina trata do estudo da pesquisadora sobre o aborto em casos de estupros no período da Primeira Guerra Mundial. A escolha por esse contexto está motivada, segundo a matéria: “em razão dos inúmeros casos de mulheres violentadas por soldados estrangeiros no período. No Brasil, opiniões médicas sobre o assunto ocuparam matérias de jornal e artigos de revistas especializadas – em um debate conduzido quase que totalmente por homens“.
Além disso, torna-se importante mencionar que, embora conduzido por homens, esse debate sobre o aborto é também reproduzido por um viés absurdamente conservador, que perdura. Na pesquisa de Bárbara, ela cita: “De modo geral, os médicos que se opunham ao aborto baseavam suas posições na ideia de que o amor materno se desenvolveria instintivamente na mulher, nos benefícios da reprodução para a defesa militar e o progresso econômico da nação e na inocência do feto“.
Na mesma linha, a fala da vereadora aponta para um “salto materno”, quando uma menina – criança ou adolescente engravida. O discurso continua sendo hospedado em visões de reprodução defendidas pela religião e um “progresso econômico” onde a mulher é, mais uma vez, instrumento para o chamado progresso, esse que explora, oprime e violenta em nome do acúmulo do capital e de Deus.
Mais uma vez, nos abrigamos em estudiosos sobre o tema para falar sobre a mulher ser alvo e instrumento de exploração em todos os sentidos. “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade” é discutido na obra da teórica Heleieth Saffioti, que amplia a visão sobre gênero, trabalho, para além do mercado capitalista, mas trazendo uma análise profunda sobre nós mulheres, os seres mais marginalizados e periféricos do planeta. A obra de Saffiioti deveria constar nos manuais de homens e mulheres no geral, especialmente de quem ocupa cargos públicos. Primeiro: para ninguém passar vergonha ao falar sobre o que não sabe e segundo, para que ninguém saia correndo do debate, como aconteceu com a própria bancada do Partido dos Trabalhadores em São Miguel do Oeste que, ao invés de sensibilizar para o diálogo, mesmo com as limitações que todos e todas temos sobre o assunto, preferiu levantar-se e deixar que o que existe de mais reacionário e conservador ganhasse tamanho espaço.
Para finalizar, nosso desejo é de que a moção receba o destino que merece, que é a lata do lixo, mas isso não é suficiente para diminuir a insensibilidade e a desinformação que carrega. Os vereadores e vereadoras fariam melhor se usassem os limites do município para definir seu espaço de atuação.

Jornalista, militante da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP).

Professor aposentado Rildo Edson Lazarotto. Mestrado em Economia e Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná. Tema da dissertação: “Distribuição de Renda no Brasil, uma análise pós Plano Real”.