Governo se afasta do movimento indígena: tutela, falsa conciliação e PEC da morte. Artigo de Gabriel Vilardi
Se é verdade que a pluridiversidade de povos e culturas originárias é uma riqueza que comporta diferenças e visões de mundo distintas, o cenário exige prudência e sabedoria. A sabedoria ancestral que essas mesmas lideranças herdaram de seus mais velhos e de suas espiritualidades tradicionais. Nesta quadra da história, a união do movimento indígena é fundamental para resistir às investidas astutas dos senhores de terno e chapéu! Vaidades e disputas mesquinhas devem ser deixadas de lado, sob pena de se contribuir para uma grande derrota, avidamente desejada pelos ruralistas.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Eis o artigo.
“Se temos contato com a cultura dos juruá há quinhentos anos, isto é a demonstração de que, de fato, o juruá poderia se tornar selvagem, continuar vivendo e ter um pouco mais de respeito com o planeta Terra”, interpela Jerá Guarani. Os “juruá” são os não indígenas, aqueles que perderam a conexão com a Natureza. “Não há palavras para descrever o quanto o nosso planeta é magnífico, mas acho que ainda não entenderam isso direito”[1], arremata a liderança do Povo Guarani Mbya. De fato, nem a grande maioria dos não indígenas, nem o governo federal parecem ter entendido a importância de um planeta ecologicamente equilibrado e habitado pelos Povos Indígenas.
Não é novidade alguma que os Povos Indígenas são desprezados, roubados e desrespeitados há mais de quinhentos anos nesse país. Suas vozes sempre foram autoritariamente silenciadas sob o poder da violência e da brutalidade, tão habilmente manejada pela elite colonial. Passaram-se os séculos, os regimes mudaram, os donos do poder respondem agora a novos nomes, mas a velha arrogância paternalista permanece profundamente entranhada no Estado brasileiro.
No fundo, a vida indígena continua a pouco valer, como se depreende dos massacres promovidos contra os Povos Munduruku e Maraguá no Rio Abacaxis e contra os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Impunidade, omissão e descaso do governo federal para com essas populações vulnerabilizadas por um sistema agrocapitalista cruel e canibal de toda diversidade. O senhor não prometeu que dessa vez teria um olhar especial aos povos originários, presidente Lula?
Nesse sentido, Dom Pedro Casaldáliga, o bispo que ousou denunciar o latifúndio em conflito com os posseiros e os Povos Indígenas, mesmo sendo um acendedor de esperanças e um homem de profundo compromisso com as lutas populares sem nunca ter se resignado, não era ingênuo. Há quarenta anos, passado o horror da impiedosa ditadura civil-militar – que exterminou milhares de comunidades originárias –, o bispo-profeta intuía que os anos de democracia tampouco seriam fáceis para os povos oprimidos:
“Abre-se a Nova República, apaixonadamente esperada pelo Povo – que sempre espera – e publicitariamente lançada pelos Senhores que sempre ganham. (…) Pouco nova, infelizmente, porque o Sistema na Nova República é o velho Sistema desumano em suas estruturas, mesmo se vestindo agora de terno civil. Porque se sentam no poder do Planalto muitos continuístas, alguns deles afamados grileiros inclusive, patrocinadores oficiais da espoliação de áreas indígenas, documentadamente denunciados, em vão. Muito menos nova para a minoria marginalizada dos Povos Indígenas, que não ‘interessa’ aos Senhores de hoje, como nunca interessara aos Senhores de ontem. Interessando-lhes, sim, o solo e o subsolo indígenas – as terras e os ouros – hoje também, a cada dia mais”.[2]
Sim, caro Bispo do Araguaia, as coisas por aqui seguem difíceis mesmo após a Constituição Cidadã de 1988 ter assegurado o reconhecimento dos territórios ancestrais dos povos que aqui já estavam, antes da chegada dos colonizadores. É verdade que houve uma vitória importante do movimento indígena no processo constituinte, incluindo no pacto nacional que inaugurava a Nova República os direitos indígenas. Deveres constitucionais que os governos vêm cumprindo infimamente e a seu bel-prazer, contudo.
Por muito tempo, vigorou o regime de tutela em que os povos originários eram representados – ou seja, controlados, abusados e violados – pelo Estado, por meio da Funai. O Estatuto do Índio (1973), aprovado pelos militares de plantão, foi construído em Brasília sem nunca ter escutado as lideranças indígenas. E assim o governo federal sempre falou pelos indígenas, agindo arbitrariamente em seu nome, como apontava Paulo Suess ainda na década de 1980:
“O estado nacional e colonizador procura racionalizar sua atuação junto aos indígenas através de uma legislação que lhe confere tutela. E ele interpreta a tutela dos indígenas, conforme a conjuntura política, como controle, custódia e/ou assistência. A lei 6.001, que delimita a tutela, não foi feita pelos indígenas. Estes nem foram consultados. Quem poderia ter falado legitimamente em seu nome? Os indígenas no Brasil e nas Américas não participam das decisões vitais para eles”.[3]
Com o art. 232 do Texto Fundamental de 88, ficou estabelecido que as comunidades originárias e as suas organizações são “partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses”. A tutela acabou! E às comunidades originárias foi reconhecido o seu protagonismo insubstituível. Ou pelo menos se pensou que a prepotência estatal de pautar, segundo seus interesses, os Povos Indígenas, tinha se findado.
Entretanto, os setores retrógrados da sociedade nacional avançaram sem pudor nos últimos anos. Sendo um dos principais objetivos não só o bloqueio, mas também o retrocesso nas demarcações das terras indígenas. A influência do “agro é pop” se espraia das sedes dos executivos aos palácios de justiça país afora, estando intensamente arraigada nas casas legislativas. Seu lobby dita, inclusive, as narrativas vencedoras nas redações dos veículos da grande imprensa. A segurança jurídica deve estar acima da própria dignidade da pessoa humana, segundo a visão amplamente difundida.
A famigerada tese do Marco Temporal vem pairando como ameaça desde o governo Temer, tendo se fortalecido no desgoverno anti-indígena Bolsonaro e chegado assustadoramente resistente no, até então reconhecido assim, governo aliado do presidente Lula. Mediante uma articulada pressão internacional e legítimas manifestações promovidas pelas organizações indígenas, a Suprema Corte finalmente decidiu declarar inconstitucional e, portanto, incompatível com a Carta da República, a estapafúrdia interpretação que quer limitar o direito das comunidades indígenas a suas terras tradicionais.
Como nunca foram tolhidos no seu direito de lucrar em detrimento das minorias oprimidas, a elite agrária e seu braço no Congresso – a poderosa bancada ruralista – resolveram contra-atacar e mostrar ao STF que a força do dinheiro está acima da Constituição. Logo após a decisão da Corte, com o apoio infame dos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, se aprovou a desastrosa Lei 14.701/23, encampando mais uma vez o Marco Temporal.
Apesar do duro golpe, entre o movimento indígena e seus aliados havia alguma tranquilidade, pois se estava certo de que a boa técnica do direito constitucional iria prevalecer e o Supremo suspenderia, assim que provocado, imediata e cautelarmente o diploma inconstitucional, como já decidira alguns meses antes. Todavia, o relator da ação direta de inconstitucionalidade, o ministro Gilmar Mendes resolveu inovar e criar uma etapa inexistente no transcurso da ação, a injusta mesa de conciliação.
Enquanto Gilmar Mendes queria forçar uma transação com os direitos fundamentais duramente conquistados pelos Povos Indígenas, ataques mortais e aterrorizantes eram perpetrados contra inúmeras comunidades, tais como os Avá-Guarani no Paraná, os Xokleng em Santa Catarina, os Guarani Mbya no Rio Grande do Sul. Como se negociar em meio à carnificina de seus parentes? Ceder a truculência dos ruralistas e abrir mão do direito à terra, base da sobrevivência das comunidades indígenas? Qual o objetivo de uma negociação em que os indígenas estão em uma posição extremamente desigual e sob a vigência de uma lei inconstitucional?
Depois de uma sequência de ameaças veladas e de uma postura neocolonialista do juiz-assessor que preside a “conciliação”, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – organização de representação nacional das comunidades originárias – corajosamente se retirou e denunciou o engodo que se encenava naquela esfera. Coerente com a sua luta histórica, reiterou o pedido para que o guardião da Constituição exercesse seu papel institucional e fizesse prevalecer a força da lei, o que infelizmente ainda não ocorreu.
Não satisfeito, o relator da ação – que coleciona posições desfavoráveis duvidosas contra os povos originários – apostou na divisão e no enfraquecimento do movimento indígena e intimou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) a indicar novos representantes, para substituir aqueles que se retiraram da negociação. Mais uma vez, em nota publicada no 14 de outubro, a Apib se manifestou com firmeza, rechaçando a ignóbil manobra:
“As violações de direitos da Câmara de Conciliação do Ministro Gilmar Mendes, impacta diretamente na garantia do nosso direito aos nossos territórios, que estão assegurados pelo Artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Pois além de não ter suspendido a Lei 14.701/2023 que regulamenta o Marco Temporal, já considerado inconstitucional, fere nossa autonomia ao não respeitar nossa retirada da Câmara da Morte ao colocar o MPI para indicar lideranças para compor a Mesa”.
Surpreendentemente, o Ministério dos Povos Indígenas chefiado pela ex-coordenadora-executiva da Apib, com o apoio de um ex-assessor jurídico da organização, resolveu curvar-se à decisão teratológica do ministro anti-indígena do STF e passar por cima do movimento indígena, sem oferecer a mínima oposição. Movimento este que não só resistiu ao autoritarismo do desgoverno anterior e apoiou o atual projeto de poder, como também exigiu a criação do novo ministério e indicou a sua titular.
O que pretendeu o MPI ao desconsiderar a posição da Apib? Arrogar-se a si, como uma espécie de neotutela, a interpretação ilustrada dos interesses indígenas? Qual a sua legitimidade para tanto, se não a força e a sustentação do movimento indígena a quem nega com tal atitude? Nesse sentido, a maior entidade de base indígena, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) se pronunciou com bastante lucidez, no dia de ontem:
“Ao fazer essa indicação, o MPI alinha-se com fazendeiros, garimpeiros, agronegócio, revivendo práticas coloniais de tutela e contra os direitos dos povos indígenas. Esse ato constitui uma violação clara ao princípio da boa-fé e ao direito internacionalmente reconhecido de consulta e consentimento prévio, conforme previsto em mecanismos de direitos humanos, como a Convenção 169 da OIT. A criação do MPI foi uma demanda coletiva, mas não tem legitimidade para nos representar dentro da estrutura do Estado brasileiro”.
Afastar-se das organizações de base e desconsiderar a autodeterminação das comunidades foi um erro inaceitável dos dirigentes do MPI. Erro que ainda é passível de ser corrigido, com a humildade e a assertividade imprescindíveis que o momento exige. Caso contrário, o já esvaziado ministério se enfraquecerá mortalmente, na medida em que os interesses e os projetos pessoais sejam colocados acima do interesse geral das comunidades. Vencerão aqueles que apostam na divisão, os inimigos dos Povos Indígenas?
Se é verdade que a pluridiversidade de povos e culturas originárias é uma riqueza que comporta diferenças e visões de mundo distintas, o cenário exige prudência e sabedoria. A sabedoria ancestral que essas mesmas lideranças herdaram de seus mais velhos e de suas espiritualidades tradicionais. Nesta quadra da história, a união do movimento indígena é fundamental para resistir às investidas astutas dos senhores de terno e chapéu! Vaidades e disputas mesquinhas devem ser deixadas de lado, sob pena de se contribuir para uma grande derrota, avidamente desejada pelos ruralistas.
Além de conseguir a suspensão imediata de uma tese já afastada pelo Supremo e retirar tal excrecência do ordenamento jurídico, a próxima batalha envolverá o Congresso Nacional. Usando de todos seus recursos, os representantes do agro atrasado e violento querem aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 48, conhecida como PEC da morte. Por meio da alteração da Constituição querem consagrar definitivamente o Marco Temporal e destruir a luta indígena. Contarão com o silêncio cúmplice das forças democráticas?
Portanto, se a Apib e as organizações de base indígenas não estiverem unidas com toda a força da ancestralidade a serviço da causa indígena, não haverá chance de vitória. Para barrar tais retrocessos, além da necessária coerência e ousadia das lideranças tradicionais, será preciso uma grande mobilização que envolva todos, mulheres e crianças, juventude e anciãos, bradando a um só ritmo as bordunas e os maracás.
Por outro lado, ao MPI cabe trabalhar para que as demarcações de terras indígenas aconteçam nos termos da Carta Magna, bem como aos povos originários seja garantida a dignidade e a proteção de seus corpos e territórios. Se a representatividade é importante, não basta. É preciso que o ministério pressione para que o governo Lula cumpra as suas promessas de campanha e reconheça as terras ancestrais. E esse legítimo anseio não é para amanhã ou para depois de uma negociação aviltante com quem quer que seja, mas deve ser atendido de imediato. Se é para garantir a segurança jurídica, que se cumpra a Constituição e se demarque os 850 territórios pendentes. Uma suposta e já ensaiada alteração do posicionamento do STF para agradar ao agro e à sua bancada, com o mínimo apoio ou leniência do governo federal seria uma afronta a toda a sociedade democrática que ainda acredita na força do Direito.
Como ensina com autoridade Sandra Benites[4], o teko porã (modo de ser) “é o que sempre buscamos, o bem-estar de todos os teko”. “Se não é dada uma voz a todos esses teko”, assevera a liderança do Povo Guarani Kaiowá, “eles podem ser apagados, podem sofrer uma homogeneização, como se fossem todos iguais, e ainda uma hegemonização, quando um apaga o outro.” Por isso, “o teko depende do momento, de quem fala”, finaliza com sabedoria. Certamente as lideranças saberão encontrar o teko adequado para enfrentar essa encruzilhada em que se encontram: defender seus interesses, sem perderem a unidade. Isso é o que mais temem os senhores do agro, união e autodeterminação. Que as comunidades indígenas e seus aliados tomem as ruas e gritem alto: não passarão!
Notas
[1] GUARANI, Jerá. Tornar-se selvagem. In: CARNEVALLi, Felipe; REGALDO, Fernanda; LOBATO, Paula; MARQUEZ, Renata e CANÇADO, Wellington (org.). Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 28.
[2] CASALDÁLIGA, Pedro. Prefácio. In: SUESS, Paulo. Crônicas de Pastoral e Política Indigenista. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 9-10.
[3] SUESS, Paulo. Crônicas de Pastoral e Política Indigenista. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 223.
[4] BENITES, Sandra. Kunhã Py’a Guasu. In: CARNEVALLi, Felipe; REGALDO, Fernanda; LOBATO, Paula; MARQUEZ, Renata e CANÇADO, Wellington (org.). Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 194.