Mãos indígenas: Plantar comida, respeitar a história e o presente, cultivar o futuro ancestral
Projeto de hortas comunitárias e agroecológicas nas comunidades indígenas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina é realizado desde 2017. Uma prática que garante alimentação sem veneno e qualidade de vida para as famílias
As hortas agroecológicas, coletivas e comunitárias, construídas em terras indígenas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, junto aos povos Kaingang e Guarani, tem sido garantia de alimentações às famílias que ficaram ainda mais vulneráveis desde o início da pandemia do novo coronavírus, causador da covid-19. Toda produção, nos diferentes territórios, incentivada pelo Conselho Indigenista Missionário e aliados/as da causa, é de respeito ao conhecimento milenar e às práticas culturais de cada povo.
A preocupação dos povos indígenas em garantir uma produção sem veneno se expressa nas palavras de Luís Salvador, Cacique da Comunidade Kaingang Rio dos Índios/RS. “Nós estamos aqui no território do povo kaingang, Terra Indígena Rio dos Índios, em Vicente Dutra. Esse território tem que dar exemplo pra toda sociedade e precisamos dar condições de vida para a terra. Ela deve dar um fruto melhor se nós cuidarmos da mãe terra”, defendeu.
Para ele, as pequenas hortas possibilitam o cuidado com o território sagrado e com o alimento que sustenta seu povo.
“Hoje nós temos quatro hectares de terra com 48 famílias indígenas que estão esperando homologação da terra. Aqui temos pequenas roças, produzimos feijão, milho. Se nós pisarmos fora do território vamos perceber que está cheio de veneno, e ali, se nós comermos qualquer folha, podemos ter doenças que se estenderão para toda população indígena. Então por isso nós fizemos pequenas hortas, pra que a gente não sai fora do território, nós temos medo do agrotóxico, que é que o Bolsonaro falava que tinha que produzir com agrotóxico. Nessa lógica dele, estamos envenenando, toda sociedade esta sendo envenenada”.
A Terra indígena em Vicente Dutra está na lista das treze TIS prontas para demarcação no atual governo brasileiro, o que para os Kaingang, representa continuar plantando sem veneno, colhendo alimentos de verdade e mantendo sua cultura por meio de uma educação diferenciada, que trabalhe o alimento, a língua, o modo de vida.
Segundo a professora Liziane Salvador, da E. E. Indígena de E. F Knhgág Ag Goj, a produção de alimentos está diretamente ligada ao trabalho dentro da sala de aula. “A minha parte é mais o resgate da comida, das marcas, da cultura. Dentro da sala de aula eu estou fazendo as receitas tradicionais”, disse.
Liziane falou sobre a importância de manter a comunidade longe dos agrotóxicos.
“A maioria das comidas indígenas que a gente fala que é indígena, são sem agrotóxico, sem veneno, a maioria dos nossos alimentos vem onde não tem veneno. Se são plantados onde o veneno alcança, o alimento vem falho”.
Para Luíz Salvador, o território ainda é pequeno para a demanda das famílias, no entanto, a comunidade preocupa-se em plantar árvores para preservar a vida das gerações futuras. “O nosso povo se obrigada a plantar feijão em um território pequeno, mas está produzindo bem, então a nossa ideia é hoje, em Vicente Dutra, aonde que tem lugar para plantar araucária, temos algumas grandes inclusive, pensando daqui a 200 anos, porque araucária com 40 anos segue dando fruto e quem ganha com isso é o povo indígena, porque ela é uma comida tradicional indígena. Nós estamos preocupados com os nossos pássaros, que vivem nela, e nós precisamos resolver a situação dos nossos pássaros para que ela tenha vida, porque se os nossos pássaros morrerem, a sociedade também vai morrer”, alertou.
Quando os povos plantam, as mãos colhem comida de verdade, e das hortas, dos pomares, dos roçadinhos, vem à base que sustenta receitas milenares
O Cacique Luís Salvador ensina como é produzida uma das receitas, a base do milho, na elaboração da farinha até se chegar a um bolo assado na cinza.
“A farinha de milho ela é ralada, depois trabalhada, se faz na cinza. Plantamos banana e as folhas são usadas para produzir um bolo dentro de uma cinza, para comer com peixe. Meus netos precisam entender que essa é a vida nossa”.
Segundo ele, manter essas receitas é defender a cultura, enquanto o sistema busca fazer o contrário, invadindo os territórios indígenas. “O capitalismo está matando o povo brasileiro, o capital está matando a sociedade brasileira. Então precisa entender esse lado, que a nossa mãe precisa ser protegida, que é a terra”.
Enquanto o capitalismo impõe cercas, os povos demarcam o chão com as sementes de vida e todo incentivo é importante
Jacson Lopes Santana é membro do Conselho Indigenista Missionário, Regional Sul. Segundo ele, em vários territórios indígenas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul as hortas agroecológicas e comunitárias foram imprescindíveis no abastecimento alimentar nas aldeias, especialmente no período mais crítico da pandemia da covid-19 e da desassistência por parte do governo brasileiro.
“No início de 2020, quando se inicia a pandemia, tivemos realidades onde as hortas foram de fundamental importância e uma delas foi a partir dos Guarani do Ara Poty. Foi o período que conseguiram tirar mais verduras e em alguns momentos fizeram a troca de alimentos com o Toldo Chimbangue, pois tinha excedente de hortaliças”, contou.
Essas famílias Guarani citadas por Jacson, foram acolhidas em território Kaingang no município de Chapecó, ao Oeste Catarinense, ainda em 2019. O espaço recebeu o nome de Ara Poty, que significa: “Flor do Dia”, em homenagem à anciã Miguela Escobar. Nesse espaço, as hortas também simbolizam o sinal de esperança.
O missionário detalha que em outras comunidades, o incentivo ao preparo das hortas foi fundamental, como nas TIS do Rio Grande do Sul, em Rio dos Índios, Kandoia, que desenvolveram esse trabalho. Em alguns lugares como na Aldeia Condá, no Oeste Catarinense, quando os indígenas não puderem sair pra vender artesanatos em razão da pandemia, as horas garantiram a alimentação básica das famílias.
Araça´í: 22 anos de luta pela demarcação e a contribuição das hortas
“Araça’í uma fruta que tem lá, que se chama ‘Arachaí’ para nós. Então é Araça´í em português, é uma fruta bem docinha, bem boa, existe bastante lá, por isso chama Araça’í”.
A explicação do nome do território sagrado é da liderança Guarani e rezador, Maximino Reis. Os Guarani do Araça´í vivem em terras Kaingang, no Oeste Catarinense, em Chapecó, em uma área cedida. Seu território, localizado entre os municípios de Cunha Porã e Saudades, também ao Oeste, ainda não foi demarcado, mas os 100 anos de idade, também de esperança do ancião, simbolizam a vontade de ter mais chão para lançar as sementes para comida e o futuro ancestral.
“Já faz 22 anos que estamos nessa luta que é o Araça’í, município de Saudades. Vocês sabem, estão vendo agora, o nosso território é bem pequeno, se fosse dar pra nós plantar seria bom, e aqui nós estamos acampados, nossos filhos ali, não temos trabalho nem pra nós mesmos, não tem, então estamos ali, só, sempre acampados”.
Maximino completará em 2023, 101 anos de vontade de viver para celebrar a conquista de seu povo. Residir sobre o seu território tradicional simboliza construir as condições para o bem-viver, o que inclui a produção de alimentos. “Eu sou o Karai, sou o rezador, então eu faço a reza para que dê tudo certo, eu falo com Deus, em todos os momentos. Ele deu a sabedoria e o entendimento. Então a gente está lutando. Agora tô indo para os 101 anos, esses tempos fizemos um almoço, festinha, comemorando os 100 anos, aqui mesmo”, contou.
Tanto para Maximino, quanto para seu filho, Marcos Mariano de Moraes, o Capitão da Comunidade Araça´í, as hortas agroecológicas e comunitárias possibilitam o envolvimento de toda a coletividade e a partilha solidária. “A gente viu que ela iria dar muita produtividade para nós em termos de alimento sustentável. Aí a gente fez uma reunião com o pessoal, comunicou todo mundo, as crianças, as mulheres, o jovem para participar e ali entramos nessa discussão para começar a organizar e fazer a horta”, disse.
Em dezembro de 2022, momento de colheita de algumas das produções na horta, a participação da comunidade se confirmou. As crianças foram até o espaço para colher e levar para suas casas o alimento produzido pelas mãos trabalhadoras indígenas. “Foi à primeira colheita de algumas verduras e nós estamos muito felizes de ter isso na nossa comunidade. Aqui nós não vamos usar veneno, o agrotóxico, pois são alimentos saudáveis, isso faz muito bem para a nossa saúde e também já é da nossa cultura de usar as plantas sem o veneno. A criançada fica muito feliz, de vim já colher, como eu estava explicando para eles, isso é um fruto do nosso trabalho, é apenas um início, tem muitas coisas para nós conquistar”, mencionou Marcos.
O pai Maximino também se orgulha do resultado da produção. “Isso é importante para nós, tem que ter um alimento sem veneno. Porque a gente vai no mercado, compra alguma coisa, carne, tudo contaminado. Importante ter uma comida que faz bem para criança como para gente também”.
Conselho Indigenista Missionário pensa junto com as comunidades indígenas
Jacson Lopes Santana do Cimi Sul, trouxe elementos da importância de fazer a construção das hortas a partir da realidade de cada comunidade e, para isso, segundo ele, se faz necessário entender a necessidade de cada povo para então planejar as ações de maneira conjunta. Conforme ele, existem outras comunidades que ainda precisam de apoio e incentivo para que esse projeto das hortas aconteça. “Pensando junto com as comunidades indígenas, conversando com as lideranças, há uma demanda de outras comunidades também desenvolverem esses projetos. A horta não é só a horta comunitária, é o espaço de convivência, dos mutirões. Nós percebemos que as famílias ficam envolvidas com o manuseio da terra, no plantio das hortaliças, é também um momento de convivência. Nos roçados que aconteceram também aqui no regional Sul, os mutirões fazem parte da vida da comunidade”.
A Extensionista Social da Epagri de Chapecó/SC, Josefina A. N. De Carvalho também destaca a diversidade de alimentos que são cultivados e que integram a vida cotidiana das comunidades indígenas atendidas pelo projeto das hortas. “Temos o plantio de mandioca, batata doce, pomar de bananeira inclusive. A gente está sempre reforçando a produção de alimentos para subsistência e até a venda do excedente, que você pode estar vendendo aquilo ou trocando”.
Segundo Josefina, durante o ano são realizadas oficina com os indígenas. “A gente faz as oficinas de aproveitamento desses alimentos. Você colhe um repolho, não precisa jogar fora aquelas folhas que excedem ao redor, você pode reutilizar, fazer um refogado, colocar no feijão”, explicou.
A presença indígena é, sem dúvidas, a salvação do planeta.
Quando uma cerca é posta, o desmatamento é visível. A presença indígena é, sem dúvidas, a salvação do planeta. Ainda em território Kaingang no Oeste Catarinense, área 60% reflorestada, voltamos a falar do outro grupo Guarani que habita por ali e também faz o cultivo das hortas. São os indígenas de São Miguel das Missões, do Rio Grande do Sul, vindos do território de Sepé Tiaraju, referência histórica que liderou os Sete Povos das Missões e lutou na defesa de seu povo contra o Tratado de Madri e o assassinato Guarani.
Por ali, uma variedade de alimentos contempla a horta organizada pelos Guarani. Um cuidado minucioso para identificar as plantas, suas funções e localização dentro do espaço reservado para o cultivo.
Para o missionário do Cimi, o apoio do Instituto das Imãs da Santa Cruz para que esses projetos possam ser ampliados para outras comunidades em 2023 é imprescindível. “A gente entende enquanto Cimi que as hortas, o projeto de roçados, são importantes e eles vêem essa necessidade de ser desenvolvido em outras comunidades. Esperamos dar continuidade”.
Apesar das dificuldades, como a falta de água nesse período do ano, a cultura vai salvando os dias, a arte por meio dos artesanatos desde os anciãos até os/as jovens que identificam as casas com suas expressões de vida, somam-se ao alimento sagrado, fazendo o bem-viver acontecer ali.
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Assista o vídeo sobre as hortas comunitárias e agroecológicas:
Jornalista, militante da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP).