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A Cura de Todos os Males 

A Cura de Todos os Males 

Rodrigo Luis Mingori
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Você já ouviu o termo panaceia? Panaceia foi, durante a idade média europeia junto com o Santo Graal, o grande mistério. Buscava-se junto com a transmutação do cobre em ouro e a pedra filosofal, a descoberta da panaceia. Em suma ela era (e é) compreendida como o remédio universal, o antidoto de todos os males. Os alquimistas medievais jamais sonhariam que na segunda década do século XXI fosse descoberto um encantamento que produziria tal efeito. Você está preparado para ouvir as palavras mágicas capazes de solucionar todos os males? Lá vai: você precisa empreender! 

Parece mágica. Porque é! Empreender é igualzinho mágica. Na base significa um conjunto de princípios de ordem moral sem fórmula exata conhecida. É uma orientação abstrata, explica pouco o como e muito o porquê. Você pode empreender em qualquer área, é fantástico. Seguindo princípios (e não métodos explícitos, pois como muitos falam não há receita para o sucesso) você pode resolver todo e qualquer problema possível. É bem provável que muitos já tenham se deparado com a situação em que uma renda extra, ou aprimorar os rendimentos, ou ampliar seus ganhos, ou maximizar e dinamizar os lucros resolvessem um problema sério, e para isso a saída recomendada é: empreender. E isso é um sintoma de um problema sério de nosso mundo contemporâneo.  

Iniciando a análise por uma via Weberiana (uma ferramenta sociológica interessante para compreender esse fenômeno social, pois é isso que a ciência social faz e sobre isso escreverei em breve) empreender é um fenômeno bastante próprio e singular do capitalismo tardio. Trocando em miúdos, essa tentativa de solucionar problemas tapando o sol com a peneira figura como solução geral para qualquer problema financeiro, é produto de um momento de nossa história em que a percepção social é individualizada. Ou seja, existe uma dificuldade em entender processos históricos ou mesmo eventos que ocorrem em âmbito coletivo (ou ainda, para usar outro sociólogo: Richard Sennet, uma compressão/supressão da esfera pública diante da esfera da vida privada).  

Para tentar ser direto: hoje em dia é muito mais difícil perceber os problemas como resultado de organização coletiva ou social. Eu devo agir de forma individual para solucionar o problema que me atinge, portanto, se ganho pouco: tenho dificuldade de/não quero compreender as origens e engrenagens da exploração a qual posso estar submetido; assim sendo, devo agir de forma individual, fazer algo a esse respeito, aumentar meus ganhos com mais trabalho ou com a dinamização dessa tarefa afim de alcançar mais ganho. Um problema de ordem social muito dificilmente pode ser resolvido com uma ação individual, ou mesmo, com ações individualizadas. E essa é a questão principal, por isso repito: o estágio de desenvolvimento das forças políticas e econômicas em face do novo horizonte psicossocial da sociabilidade própria do capitalismo tardio, geram esse espantalho tenebroso que é o empreendedorismo.  

O empreendedorismo cumpre a função que a loteria cumpria há algumas décadas (ou séculos em alguns casos). Em muitas sociedades contemporâneas a loteria tem uma função essencial, manter a esperança para solução milagrosa da pobreza de forma individualizada. Ela não vai fazer uma sociedade rica e sim uma pessoa rica. Eventualmente eu posso ser o sorteado da vez, enquanto isso continuo aceitando esperançoso minha condição paupérrima. Assim tabé fucniona o empreendedorismo. Porém, existe algo de mais perverso nesse princípio quase mágico: a culpa. Se você ainda não obteve o sucesso que espera na atividade de empreender, a culpa é sua. Você não fez o suficiente ou fez algo errado. E isso é cruel. Ter azar e não ser sorteado na loteria é uma condição inerente da qual pouco tenho controle, não ter sucesso numa empreitada empreendedora raramente diz respeito a algo externo, portanto sou culpado.  

Uma das obras mais famosas de Weber se chama “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, nela o autor formula, entre outras coisas, uma análise (para ser bem superficial) apontado a relação de causa e consequência entre o capitalismo e as religiões protestantes da época. O sociólogo aponta como algumas características das “novas” religiões são produtos do sistema capitalista da época. Complementando, temos: o pensamento religioso é construído historicamente, e por ser histórico, é marcado pelo seu tempo. Portanto analiso: o empreendedorismo parece ser, nesse caso, a religião do capitalismo tardio. Convido você a observar materialmente essas semelhanças: veja como eventos de empreendedorismo se utilizam muito de catarse e exaltação; esteticamente parece haver uma aproximação entre algumas figuras religiosas e mentores/coachs. Antes de iniciar o discurso é quase impossível dizer quem é quem. O fenômeno das mega churchs nos Estados Unidos tem uma similaridade grande com grandes eventos de inovação/empreendedorismo. Essa parece ser uma religião em que o Deus é o capital. 

E não há problema nenhum em qualquer religião. Mas empreendedorismo não é religião e há um problema grave sim nessa confusão no que tange a transferência da responsabilidade do sofrimento e da pobreza. Há um problema muito sério em vender uma ideia simplória e simplista que através de um esforço individual descontextualizado e altamente idealista um indivíduo possa superar suas dificuldades, como se não houvesse uma sociedade ao redor dele. Existe um dano malévolo em creditar ao pobre a causa de sua pobreza, pois só assim, o empreendedorismo poderia curar qualquer mal. E, mais uma vez, isso só pode ser gestado onde existe a concepção socialmente difundida que riqueza ou pobreza não são concepções socialmente produzidas e intimamente relacionadas. Por fim, gostaria de propor um experimento mental (tipo o que o Schrödinger fez com o gato), mais como uma brincadeira, lá vai: Olhe ao seu redor e/ou pense nas pessoas que você conhece, minha suposição besta é, imagine que TODAS elas começam a empreender e de alguma forma obtém sucesso, é possível que TODAS ganhem muito dinheiro? Se TODO mundo empreender (e de maneira mágica conseguir), vai TODO mundo ficar rico? 

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Isso tudo é outra evidência de como a mercadoria ocupa o centro das relações humanas provando como vivemos tempos pobres e tristes. Mas isso é assunto para ser abordado em outro momento. Esse foi um pequeno ensaio introdutório e bem básico. Futuramente abordarei essa questão dentro de minha área de maior expertise que é a educação. Para pensarmos como a difusão do empreendedorismo afeta a educação pública.  

Um grande abraço e até a próxima.