Crítica: Ópera Xucra Cabocla, encenada na EEB 30 de Outubro, no Assentamento Rio dos Patos, nos 110 anos da Páscoa Sangrenta do Contestado
QUANDO A MEMÓRIA ENCONTRA O PALCO: A EEB. Trinta de Outubro E O PASSADO HISTÓRICO DA GUERRA DO CONTESTADO
No interior de Santa Catarina, em Lebon Régis — cidade reconhecida como o Coração do Contestado —, uma experiência rara uniu história, arte e educação pública: a Escola Estadual Básica 30 de Outubro apresentou, entre os dias 21 e 24 de outubro de 2025, a “Ópera Xucra do Contestado – 110 anos da Páscoa Sangrenta no Massacre de Santa Maria”. O espetáculo marcou a XI Semana do Contestado e mobilizou toda a comunidade escolar e local. Foram sete apresentações ao longo de uma semana, duas por dia, e todos os estudantes das escolas públicas do município se revezaram na plateia para assistir à encenação.
A obra, escrita pelo geógrafo e professor Nilson César Fraga, trouxe para o ginásio da escola um espetáculo de canto, performance corporal, luz e cenografia impressionante: cruzes, tochas, fumaça e uma cidade simbólica que rememorava a cidade Santa de Santa Maria, palco do massacre de 1915. Em cada cena, a comunidade cabocla ganhava corpo e voz, recontando a história não mais sob o signo do fanatismo, mas como uma luta coletiva marcada pela esperança e pelos projetos da Santa Irmandade de São João e São José Maria.
A Escola 30 de Outubro é, há anos, referência na preservação da memória e na valorização da cultura cabocla. Mesmo antes da ópera, já desenvolvia práticas pedagógicas profundamente conectadas ao território e às histórias locais, tais como uma peça de teatro, escrita por adolescente que depois virou o filme dirigido por Márcia Paraíso chamado Para não esquecer a guerra. O espetáculo amplia essa tradição, transformando a escola em um centro vivo de elaboração historiográfica e estética — um lugar em que a memória se encena, mas também se repensa e se projeta em novas gerações.
Estive na cidade para assistir à peça no dia 24 de outubro, acompanhado de 22 estudantes do primeiro semestre do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), do professor argentino Manuel Fontenla e da professora Janice Gonçalves (UDESC). O que presenciamos foi mais do que uma apresentação teatral: foi uma pedagogia encarnada, em que alunos e alunas, famílias, educadores e artistas se tornaram guardiões de uma história que, por muito tempo, foi interpretada apenas como fanatismo ou banditismo. No palco, o Contestado reaparece como território de fé, luta e utopia.
O título “Ópera Xucra do Contestado” abre espaço para uma reflexão sobre o poder e o risco das palavras. Historicamente, “xucra” foi termo usado de modo pejorativo para designar populações indígenas e caboclas como “selvagens”, “não domesticadas”. Nilson Fraga propõe ressignificar o termo, entendendo-o como “indócil” no sentido positivo — aquilo que não se dobra, que mantém a força de sua origem e de sua terra. A proposta é legítima e poética, mas também convida à escuta crítica: palavras carregam memórias de dominação, e ressignificá-las requer tempo, diálogo e sensibilidade coletiva. A escolha de “xucra” pode, assim, ser vista como uma tentativa ousada de transformar a ferida em potência.
A ópera cabocla de Lebon Régis confirma o quanto a arte e a escola podem juntas curar revisitar feridas e esquecimento e também abrir horizontes. O trabalho dos educadores e estudantes da Escola 30 de Outubro não é apenas homenagem, mas gesto político e afetivo de reapropriação da própria história. Entre luzes, cantos e corpos em movimento, o Contestado volta a ser esperança — um lugar onde o passado ainda fala, mas agora, em voz viva e plural. Rogério Rosa, Professor do Curso de História da UDESC.
Nilson Cesar Fraga, é Pesquisador do CNPq/PQ. Geógrafo. Professor no Curso de Geografia na Universidade Estadual de Londrina. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Coordenador do Laboratório de Geografia, Território, Meio Ambiente e Conflito – GEOTMAC/UEL. Professor no Programa de Pós-graduação em Geografia na Universidade Federal de Rondónia – PPGG/UNIR. E-mail: ncfraga@uel,br
