A verdade da COP grita desde Iguatemi, presidente Lula: agromilícia assassina Vicente Kaiowá e Guarani com a negligência do Estado
É urgente que o governo federal adote medidas coordenadas e articuladas para que todos as terras Guarani e Kaiowá sejam demarcadas
Desde as 4h da madrugada deste domingo (16/11), inúmeras imagens de barbárie circularam denunciando a fúnebre dimensão do ataque sofrido pelas famílias Kaiowá e Guarani do tekoha Pyelito Kue, em Iguatemi (MS). Vicente Fernandes Vilhalva, de 36 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça em área reconhecida pelo Estado brasileiro como indígena desde 2013.
Entre as tantas imagens da barbárie, presidente Lula, uma cena ainda mais dilacerante: o corpo de Vicente sem vida, com a cabeça coberta por uma camisa vermelha. Ao redor do corpo, parentes e pessoas da comunidade acocados em pesado silêncio, incrédulos, entre a dor e as orações de despedida. Assim, irrompe mais uma manhã para os Guarani e Kaiowá enquanto, na inércia do governo federal, são massacrados pela agromilícia.
Até quando o seu governo, presidente Lula, seguirá aceitando tragédias repetidas como esta envolvendo os Kaiowá e Guarani? O corpo de Vicente é a verdade da COP30, é a verdade dos povos indígenas para além das bravatas do governo. Há um ano, Neri Guarani e Kaiowá era assassinado; há dois anos, Pyelito Kue sofria um brutal ataque. Sem a demarcação de suas terras, os Kaiowá e Guarani se arriscam em retomadas numa região em que a agromilícia age como se estivesse em uma terra sem leis – e sem quaisquer ou poucas consequências.
Os ataques são sistemáticos, permanentes e estruturais, presidente Lula. Se manifestam na forma de um acampamento, como em Douradina (2024), contra os tekoha da TI Lagoa Rica-Panambi, sob a bandeira do movimento Invasão Zero, ou com o uso das polícias estaduais, como se viu neste ano na TI Guyraroka e no tekoha Passo Piraju. Sempre com as agromilícias envolvidas ou à espreita.
Presidente Lula, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) baixou recomendação ao Estado brasileiro para que declare estado de emergência em casos de reiterada violação de direitos humanos.
É preciso recordar, presidente Lula, que a comunidade de Pyelito vinha sofrendo ataques há semanas; que estes ataques são da plena consciência do Estado Brasileiro e que inclusive existem portarias em vigor garantindo a atuação das forças de segurança federais na proteção dos indígenas.
É inacreditável que no final do terceiro ano do seu governo, presidente Lula, ainda haja falta de articulação para garantir os direitos territoriais dos povos indígenas, que foi uma das principais promessas de sua campanha
O desprezo às leis e às autoridades públicas é tamanho no Mato Grosso do Sul, presidente Lula, que o assassinato de Vicente se deu em um ataque coordenado após pedido impetrado pela Procuradoria Federal Especializada da Funai de que a Policia Militar fosse impedida de realizar despejos sem ordem de reintegração. Ou seja, sem contar com os “jagunços de Estado” (como nominados pelos Kaiowá) à plena disposição, como tem sido recorrente, a agromilícia decidiu atacar na calada da noite.
Até o momento, a estratégia de proteção do governo federal, limitada ao envio de precários efetivos da Força Nacional a territórios depois que os ataques já são consumados, mostrou-se absolutamente ineficiente; e por ser uma estratégia reiterada, sem outras medidas associadas, acaba apontando para inação e apatia. Não houve até o momento ações qualificadas de prevenção da violência, usando os serviços de inteligência das forças disponíveis do Estado, para impedir novos ataques e apurar os crimes já acontecidos.
Entretanto, o governo continua patinando na regularização dos territórios indígenas, cerne fundamental da questão, o que transluz inadmissível descoordenação entre os órgãos competentes. Diante de um cenário já complexo pela vigência da lei 14.701/2023, flagrantemente inconstitucional, promulgada pelo Congresso e mantida até hoje sem nenhum sentido pelo Poder Judiciário, as várias salas de situação e grupos de trabalho criados no âmbito do Executivo não conseguiram encontrar caminhos para destravar a demarcação das terras e sequer conseguiram aproximar as perspectivas de ação dentro do próprio governo.
É inacreditável que no final do terceiro ano do seu governo, presidente Lula, ainda haja falta de articulação para garantir os direitos territoriais dos povos indígenas, que foi uma das principais promessas de sua campanha.
Pyelito Kue, presidente, ao lado do tekoha Mbaraka´y, faz parte da Terra Indígena Iguatemipegua I, que está em fase de publicação da Portaria Declaratória, com a conclusão da análise de 16 contestações. Está no processo SEI n. 08620.033719/2013-64, remetido com pressa ao GM, que solicitou a tramitação ao MJSP, concluída em 13 de novembro de 2025. É questão de coragem e vontade política.
Enquanto em Belém o governo insiste em mostrar a COP30 como a “COP da Verdade”, nos tekoha Guarani e Kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul acontece a verdadeira batalha
Ao mesmo tempo, em meio ao impasse, algumas instâncias do Executivo continuam especulando com medidas inconstitucionais como a compra de terras ou a indenização pela terra nua no Mato Grosso do Sul, criando precedentes extremamente perigosos, alimentando expectativas na elite econômica do estado e condenando os povos à repetição do esbulho de suas terras sagradas.
Enquanto em Belém o governo insiste em mostrar a COP30 como a “COP da Verdade”, nos tekoha Guarani e Kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul acontece a verdadeira batalha entre o agronegócio, modelo predatório de apropriação da terra e de envenenamento da vida e do solo, e as formas diversas de habitar o mundo dos Guarani. A superação do colapso ambiental se trava em cada território e esta madrugada mais uma vida foi ceifada nessa disputa.
Não serão, presidente Lula, fundos de investimento curtidos na lógica capitalista, novos incentivos ao agronegócio ou apoio a créditos de carbono as medidas que conseguirão colocar um freio ao colapso ambiental a que estamos submetidos. Definitivamente, não! É a demarcação dos territórios e a proteção das formas próprias de vida dos povos indígenas, frente à violência e o esbulho, dentre outras medidas, o que abrirá caminhos para que esta COP seja verdadeiramente diferente e mude o rumo das COP anteriores.
É imprescindível que os crimes contra os Guarani e Kaiowá sejam apurados e que haja responsabilização de todas as instâncias que alimentam esse esquema de terror no estado, incluindo agentes públicos
É urgente que o governo federal adote medidas coordenadas, articuladas, presidente Lula, para que todos os territórios do Cone Sul do Mato Grosso do Sul, incluindo Pyelito Kue, sejam efetivamente regularizados nos próximos meses, antes que a única preocupação seja o processo eleitoral. Já prometeram isso muitas vezes e não cumpriram. O governo já tem toda a informação técnica necessária para avançar na demarcação, não precisa de novos levantamentos, de mais reuniões infindáveis que não chegam a nada; o que falta é vontade política, determinação, articulação e alinhamento.
É imprescindível que os crimes contra os Guarani e Kaiowá sejam apurados e que haja responsabilização de todas as instâncias que alimentam esse esquema de terror no estado, incluindo agentes públicos. A violência contra os povos indígenas não pode ser naturalizada, presidente Lula, como se fosse parte da paisagem e da conjuntura. A violência precisa ser superada com a garantia dos direitos territoriais
O Cimi – sempre na certeza de que Nhanderu, na contramão do que faz o Estado, jamais abandonará seu povo – seguirá com suas orações, acendendo velas de condolências e honrarias aos mártires Guarani e Kaiowa. Na esperança de que um dia possam ser acendidas fogueiras ao invés de velas, e que as terras possam estar demarcadas e protegidas.
Dessa maneira, o Cimi não se furtará de percorrer todos os caminhos necessários para denunciar e cobrar as medidas necessárias com o intuito de que as famílias Kaiowá e Guarani possam encontrar vida onde hoje existe apenas morte.
Conselho Indigenista Missionário, 16 de novembro de 2025.
