Lendo agora
Um texto de Páscoa escrito por uma menina em 2013

Um texto de Páscoa escrito por uma menina em 2013

Claudia Weinman
blank

Texto escrito em 2013, aula de Redação Jornalística.

A gente dormia. Os preparativos para a chegada da páscoa estavam todos praticamente prontos. O coelho feito de algodão na aula de artes da escola era o que eu mais gostava, para completar ele, só faltavam às casquinhas que eu e o meu irmão do meio, Fabio, havíamos pintado durante a semana, com papel crepom vermelho, azul, amarelo e verde. A mãe planejava fazer os cricris quando o sábado chegasse. Mas estávamos apenas na sexta-feira, dizia ela que fazê-los no sábado de aleluia seria bem melhor, ficariam mais fresquinhos. Os chocolates em barra meu pai comprava. Moldados nas forminhas de coelho, eu e meu irmão nos divertíamos, metade a gente colocava na forminha, a outra, meio escondido, a gente comia e se deliciava com aquilo que durante o ano todo faltava. Faltava não por ruindade do pai e da mãe, mas porque eles não tinham mesmo, dinheiro era uma coisa que víamos quando o pai dava uma moeda de R$ 0,25 para comprar geladinho na escola. Eu era bem feliz. Chupava geladinho na escola com os R$0,25 que o pai me dava antes de eu sair para pegar o ônibus. Demorava 1h para chegar à escola Getúlio Vargas em Descanso. Lá, só tinha até o quarto ano, depois, os maiores iam estudar na Escola de Educação Básica Everardo Backheuser que está localizada no mesmo município.

A gente só estudava em Descanso porque tinha ônibus que passava pegar eu e meu irmão, um vizinho e meus dois primos. Antes, caminhávamos 4 km para chegar até o bairro Santa Rita, na escola. Eu achava longe, mas o mano sempre vinha brincando comigo, a gente era bem criança ainda. Nem imaginava que o mundo, que a vida das pessoas poderia ser tão sofrida um dia.

Jogávamos bola em casa, à tardinha, depois de recolher a lenha, fazer cavaco, pegar a grimpa. A goleira foi Fabio quem fez, ele era muito criativo para essas coisas. Minha mãe também era criativa, distraia a gente para que não pensássemos que as coisas não andavam muito bem. Na verdade, eu acho que a vida inteira ela tentou fazer isso, mas o choro da verdade um dia foi inevitável.

Eu gostava de sentar entre as pernas do meu pai quando ele chegava em casa da roça. Minha mãe e ele tomavam chimarrão e eu ficava brincando, ouvindo eles conversarem, mas na verdade, nunca prestei muita atenção. Poucas lembranças eu tenho dos tempos em que era criança. A gente vai automaticamente apagando da memória o que nos trás angústia. Só lembro que eu estava dormindo naquela noite, quando nossas vidas foram mudadas.

Percebi uma movimentação estranha na casa. Era madrugada do dia 19 de abril de 2003. Às vezes a casa que era de madeira dava alguns estalos, eu sempre achava que era algum fantasma, morria de medo. Mas dormia mesmo assim, nem pensava em levantar. Levantar só de manhã, quando a mãe ou quando o meu irmão mais velho, Carlos, vinha me chamar. Gostava mais quando a mãe me acordava, porque o Carlos tirava meu cobertor, arrancava o colchão da cama, fazia a maior bagunça e me deixava estressada. Hoje eu entendo que ele só queria brincar, já que a gente se via pouco.

Ele foi para o seminário muito cedo. Morava em Chapecó. Dizia que queria ser padre, mas não levava jeito nem pra cantar, nem pra tocar violão, nem muito para rezar. Mas eu achava que ele seria, porque desde criança a mãe que sempre foi muito religiosa, colocava a gente na frente do rádio e fazia cantar canções de igreja. Eu não sabia ler, mas cantava os finais de frase. Carlos era desafinado, Fabio era o que melhor se saia, e a mãe, fazia a voz principal, era na verdade quem conduzia a melodia. Depois de gravar nossas vozes no rádio, a mãe passava semanas ouvindo a fita com a gente cantando. No começo me divertia, mas depois passei a enjoar.

Carlos também enjoou, mas foi do seminário, não era o que ele queria. Ele aproveitou  foi para estudar filosofia, para fugir da vida sofrida que a gente levava na roça. Foi um susto para toda a comunidade, mas, ninguém poderia obrigar o menino a ser padre. Fez um mestrado em Santa Maria, na mesma área da filosofia, ganhou bolsa e sustentava a gente com o que conseguia por lá, com a mão amiga do professor Valdir Eidt e pelo que me conta, do professor Miguel Spinelli também.

Eu sentia saudades dele, todos nós sentíamos. Raras vezes a gente se via durante o ano, o dinheiro era curto, telefone nem tinha para se falar, o jeito, era escrever carta. Mas daí também era outra dificuldade, talvez até maior, porque de tão feia que a letra dele era, tinha que escrever outra carta pedindo o que estava escrito na primeira, isso gastava selo, então, às vezes nem escrever a gente escrevia.

Mas ele estava em casa naquela madrugada de abril. Era quase páscoa. Um dia antes, o pai tinha rezado culto na comunidade, ele era ministro, e há tempos vinha se dedicando a igreja, talvez até demais. Passava noites lendo a bíblia, sabia de quase tudo que nela está escrito. A voz dele chamava a atenção de todos durante o culto, por isso também, ninguém dormia na hora da reflexão. Eu comecei a ter mais coragem para pegar o microfone e falar na igreja porque ele e minha mãe conduziam a gente. Era um grude, o ‘chiclé’ do pai. A gente fazia de tudo na igreja, cantava, fazia teatro de natal, páscoa. A última canção que interpretei se chama ‘meu velho pai’, um ano depois daquele mês de abril.

Abril. Eu percebi que não eram apenas estalos na casa. Meu pai se levantou e veio até mim. Eu dormia, mas acordei com um beijo na minha testa e ele dizendo: “Pai te ama, nunca se esqueça disso”. Senti como ele estivesse se despedindo de mim, não entendi o motivo daquela cena, embora soubesse da afetividade que meu pai tinha comigo, talvez até mais que com os meus irmãos, afinal, eu sou a caçula da casa e esses, precisam ser mimados, sem dúvidas. Virei de lado e dormi enquanto ele de mim se distanciava.

Dormia sempre que Carlos vinha de suas viagens para casa. A gente deitava na cama beliche, eu e ele na cama de baixo e Fabio na cama de cima. Tinha uns oito anos de idade, me agarrava na barriga do mano e, enquanto ele lia para gente o livro ‘Dom Quixote de la Mancha’, de Miguel de Cervantes y Saavedra, eu segurava o dicionário na mão e a cada palavra difícil, procurava o significado, ou seja, passava a maior parte do tempo procurando palavras do que ouvindo a história. E quando cansava, dormia na barriga do mano.

Ele brigava muito comigo quando eu não fazia o tema da escola direito. Sempre ficava furiosa quando ele vinha de Santa Maria passar as férias lá em casa. Carlos me trancava no quarto do Fabio, me fazia escrever trinta e poucas vezes o mesmo texto, em cada uma delas, enchia de alterações e amassava a minha folha, então eu tinha que recomeçar. Exigente era ele. Queria que eu aprendesse a escrever direito.

Às vezes, nas manhazinhas, enquanto o pai e a mãe e o Fabio faziam roça, ele ficava na nossa casa estudando para o mestrado. Então, ele pegava um dos  livros de Kant e lia alguns trechos, em seguida, pedia-me para explicar o que eu havia entendido. Com oito anos, quase nada. Também não entendi muita coisa depois que vi meu pai transformado, menina apenas, eu era.

Ouvi gritos de desespero vindos da cozinha. Senti um aperto no coração, como se estivesse adivinhando algo. Minha memória já apagou muita coisa, mas lembro do barulho que ouvi de alguém pulando da beliche no quarto dos meninos, então eu sai correndo e gritei para o Fabio: “Mano, o pai”. Depois disso não recordo muito. Até fiz um esforço para lembrar-me das cenas sucessivas, mas não consegui chegar a um entendimento na minha memória. Minha mãe, conta muita coisa. Algumas delas prefiro não saber. “Você pegou a santinha na mão e colocou entre as mãos do seu pai”.  Diz ela que falei: “Pai, tu vai ficar bem, confia”, acrescentou minha mãe me colocando lágrimas nos olhos.

Ele caiu sobre o chão da cozinha, piso avermelhado, liso de cera. Bateu com a cabeça no chão e esparramou erva da cuia de chimarrão ao redor. Minha mãe e meu irmão Carlos, o levantaram e conduziram-no para o sofá da sala. Meu pai tremia, e não falava. Cena que vi algumas vezes quando ele tinha crises de epilepsia causada por um corte no pé, bem antigamente, quando ele ainda tinha 18 anos e estava carneando porco na velha casa de meus avós, que nunca conheci.

Um vizinho veio ajudar depois que meu irmão Fabio foi chamá-lo. Ele levou meu pai para o hospital São Miguel. Minha mãe permaneceu em casa junto comigo e com o Fábio enquanto Carlos acompanhava meu pai. O dia amanheceu com menos brilho, e a preocupação de minha mãe passou a ser notável. “Eu tive um pressentimento muito forte e ruim”, conta a mãe.

Eu mesma não acreditei quando ela me contou, depois de tantos anos, eu nem lembrava que as coisas tinham acontecido com tanta proporção. A gente não tinha muita coisa, nem imaginávamos que pudéssemos perder ainda mais. Eu pensava que meu pai voltaria para casa, quando fosse meio dia. Era assim que acontecia nas outras vezes quando ele passava mal.

Minha mãe saiu de casa de a pé, a gente morava no interior de Descanso, na linha Parda. Ela saiu e disse que retornaria logo. Caminhou 10 km para saber notícias do meu pai, não tinha dinheiro para ônibus. Eu e Fabio ficamos em casa, jogando sinuca com bolitas na mesinha de madeira que meu irmão fez. Ele foi um pai pra mim. Colocou um filme de desenho e brincava comigo para me distrair. Eu só pensava no coelho que ainda estava incompleto, devido à falta de cricris que minha mãe prometeu fazer.

No começo da manhã foi mais tranquilo, mas depois, comecei a enjoar de ficar em casa sem o pai, sem a mãe e sem o Carlos. A gente sempre ficava junto nessa data, já era sábado de aleluia. E o dia foi se acabando. A tia morava na casa ao lado e minha mãe pediu que ela nos avisasse para dormir na casa dela. Eu achei interessante dormir lá, tinha um pão com nata e açúcar que eu gostava muito, mas não queria passar a páscoa longe da minha família.

A gente dormiu, e acordou durante 30 dias sem ver meu pai. Algumas notícias chegavam por telefone, na casa da tia. Ela saia chorando para o quarto e não me contava o que havia. Meu irmão Fabio, só dizia que o pai estava bem, até a primeira volta pra casa da minha mãe.

A decisão tinha que ser rápida. “Ele está morrendo, precisamos que a senhora assine o termo de responsabilidade”, a médica dizia para minha mãe no hospital Regional de Chapecó. Meu pai teve paradas respiratórias em São Miguel do Oeste. Foi transferido para Chapecó, passou a viagem levando ‘choque’ no peito para sobreviver. Foi para a mesa de cirurgia. Minha mãe assinou o termo ao vê-lo morrendo na sua frente.

Eu ficava sentada na área da casa da tia, não entendia o que estava acontecendo, o porquê meu pai estava demorando em voltar. Comia o pão com nata e açúcar, mas sempre faltava algo. Até que minha mãe voltou para casa. Sozinha. A gente passou dias e dias com o sorriso contado no rosto. Meu susto foi ainda maior, depois dos 19 dias na UTI e dos 11 dias no quarto em Chapecó. Foi a primeira vez que o vi depois da páscoa, deitado em uma cama do hospital São Miguel.

Não conhecia mais meu pai. Parecia que tinham colocado outro no lugar. Ele tinha dificuldades em falar, não mexia normalmente o braço direito, não caminhava, estava travado na cama. Sai do hospital mais desesperada e confusa, eu queria a nossa vida de volta. Eu ia para a escola todos os dias, chorava. Mas Fábio, foi o grande parceiro que tive, durante toda a adolescência.

Precisávamos de R$ 1000 reais para pagar a ambulância que conduziu meu pai a Chapecó. Confiantes, eu e minha mãe fomos até a fazenda de um empresário que possuía muito dinheiro e para quem meu pai trabalhava quando ainda tinha forças. Minha mãe, com toda humildade, perguntou-lhes se poderiam nos emprestar o dinheiro, já que meu pai era um dos mais dedicados trabalhadores que tinham. “Trás aquela sacolinha ali do fundo pra elas levarem”, foi à resposta que tivemos da esposa do patrão.

Quando abri para ver o que tinha dentro da embalagem, observei casquinhas velhas de cuca, já mofadas com o tempo. Essa foi à resposta para o nosso pedido. Então, comecei a compreender que quanto mais um ser humano trabalha para o outro enriquecer, menos podemos contar com essas pessoas. A gente voltou, trazendo nas mãos as casquinhas mofadas apenas.

Alguns impasses para cuidar da saúde de meu pai começaram a aparecer. Morávamos no interior, divisa entre São Miguel e Descanso. Nenhum dos dois municípios queria nos atender.

“Nenhum dos dois municípios atendiam a gente. Só precisávamos de atendimento médico”, conta minha mãe.

Mudamo-nos para a casa de uma conhecida, logo depois de meu pai ter sido liberado do hospital. Fomos morar no bairro Santa Rita. De favor, para sermos atendidos pela secretaria de Saúde de São Miguel do Oeste. A casa parecia um formigueiro. Muitas visitas, muita gente querendo saber sobre o estado de saúde de meu pai. E a gente foi cansando. Trinta dias depois, retornamos para nossa casa no interior, para recomeçar nossa vida naquela terrinha boa que tínhamos. Reconheço a bondade de quem nos ajudou, doou comida, por exemplo, mas também consigo pensar nas vezes que nos roubaram, cobraram contas sem merecermos e coisas do tipo.

Eu acreditava que meu pai ficaria normal de novo, queria acreditar. Precisava acreditar. De manhazinha quando minha mãe e Fabio iam para a roça, eu cuidava do pai em casa. Carlos havia conseguido aulas na Federal de Cuiabá no Mato Grosso. Às vezes eu entrava no ônibus da escola e sentava no cantinho do banco pertinho da janela. Com os braços doídos e vermelhos.

Meu pai tinha começado a andar e como eu não conseguia segurar ele, a minha tarefa era a de não deixa-lo chegar perto da escada da sala para que ele não caísse, somente quando minha mãe ou meu irmão voltasse. Mas ele já não tinha mais consciência de seus atos, segurava firme nos meus braços e me empurrava para sair da frente da porta e, quando ele caia, eu me desesperava, em choros chamava por minha mãe. Então, quando ela chegava em casa e levantava meu pai, eu corria para o quarto e chorava em cima da cama. Não era mais a mesma coisa.

As coisas foram ficando difíceis, longas fases de recuperação ainda estavam por vir. A gente trocou de lugar. A vida é mesmo um ciclo, os pais cuidam da gente para um dia receberem os mesmos cuidados, mas no nosso caso, esse cuidado chegou bem cedo, mais, do que a gente imaginava.

Minha mãe também não imaginava casar tão cedo.

“Minha mãe sofria disso, meu irmão sofria disso e eu não via a hora de ver o fim dessa doença, não queria mais ver”, conta minha mãe, lembrando o sofrimento que era cuidar de meu tio e minha avó, ambos, vítimas de AVC.

Certamente a pessoa que mais sofreu com isso tudo foi minha mãe. Menina nova se casou com 21 anos, oito a menos que meu pai. Ele nunca contou a ela que sofria de epilepsia. “Não sabia que ele sofria de epilepsia, fiquei sabendo em Dionísio Cerqueira, quando ele teve a primeira convulsão. Carlos já tinha dois anos e eu, 24”, lembra.

Minha mãe conta que meu pai sofria de hipertensão e que há anos, ela cuidava dele. “De madrugada ele começava a se sentir mal, às vezes ele dava a volta de não desmaiar”, conta. Na época em que se casou com minha mãe, ele não tomava os medicamentos como deveria ser, a pressão começava a subir de madrugada. “Ele dizia que não tinha dinheiro para comprar remédios na época e que a farmácia não vendia sem receita”, recorda.

Então, a roça foi ficando de lado. Fabio tinha apenas 14 anos. Minha mãe diz que foi uma das piores fases de nossa vida. Não tínhamos condições de trabalhar na roça para sobreviver, não tínhamos salário, e com isso também, não tínhamos dinheiro para manter os custos e cuidados de meu pai. “Eu usava panos porque não tinha como comprar fraldas para ele, dava muita roupa para lavar, mas era o jeito”, recorda a mãe. Algumas fraldas a gente ganhava, e utilizava só quando saíamos com meu pai, logo que Fabio aprendeu a dirigir o fusca amarelo que meu pai tinha.

Aprender também foi uma das tarefas que meu pai teve aos oito anos de idade, quando carregava três garrafas de leite na frente do peito e três garrafas atrás, nas costas, com uma mochila feita de pano pela vó Ilda Tereza Weinman. O pai de meu pai era alfaiate e fazia ternos por encomenda. Meu pai tinha 14 irmãos, todos moravam na cidade, em carazinho (RS), na Colônia Dona Julia.

Ele andava 1 km com as garrafas de leite para entregá-las na cidade. Como pagamento, recebia uma garrafa que era destinada a irmã de seis meses. A irmã que mais tarde foi adotada por um padeiro. Ninguém nunca mais a viu. Meu avô abandonou a família quando meu pai tinha 11 anos, por consequência, a vó deu todos os filhos, pois não tinha como criá-los.

See Also
blank

Criação. Devo muito dessa palavra a Fabio. Meu pai já não era o mesmo, a gente queria a atenção dele, mas a nossa tinha que ser a maior. Minha mãe vivia nervosa e triste, por saber que o passado de sofrimento com a vó e o tio haviam voltado na pessoa de meu pai. Um derrame muda muita coisa na família de quem vive isso. Comecei a me sentir inútil, porque a gente vivia brigando, impaciente por não ter o pai de antes.

Diversas vezes me tranquei no banheiro após as refeições. Em poucos dias, fui emagrecendo, cada dia, mais. Eu jamais contei o que aconteceu comigo, talvez nesses escritos, a revelação seja maior. Queria a atenção da minha família de volta, queria meu pai de volta. Algumas vezes minha mãe me levou a psicóloga do posto de saúde, para que eu contasse a ela o porquê tinha emagrecido tanto.

Não contei. Nem mesmo para Carlos que sentou comigo e me pediu para falar a verdade. Eu era muito menina para entender tudo, mas não quis contar o que se passava. Não comia na frente de ninguém, passei cinco anos assim. Bulimia e anorexia, ocasionadas por um trauma muito grande.

Trauma maior talvez tenha sido da minha mãe que passou por tanto sofrimento. Mas teve seus momentos alegres. Sentiu-se muito feliz ao conhecer meu pai em um baile na linha Cruzinhas, em Descanso. Meu pai era católico e minha mãe evangélica. Por isso também que ela nunca frequentou uma escola, meu vô era uma pessoa muito racista e anticatólico. Mas ela aprendeu a ler igual, ouvindo rádio e lendo a bíblia.

Depois que casou com meu pai, viveram períodos de mudanças constantes. A primeira delas foi morar na granja do Padre Lincs, no Bairro Santa Rita. Meu pai era tratorista e minha mãe ajudava na casa e na roça. Outra mudança ocorreu quando decidiram morar na linha Aparecida em São Miguel do Oeste, na propriedade de Lauro Cheler, o mentor do frigorífico aurora. Mais tarde, mudaram-se novamente, passando a residir na granja do Jairo Izé em Dionísio Cerqueira, onde permaneceram durante seis anos, quando retornaram para São Miguel do Oeste e ganharam um pedaço de terra de meu avô, que deixou no inventário, a parte de direito de minha mãe. Uma vida de mudanças e sofrimentos, de traumas e acusações. Meu avô acusava minha mãe por ter nascido. Depois que ela nasceu minha vó piorou de saúde até morrer.

Meu pai não morreu, mas o derrame que o deixou com sequelas irreversíveis nos mata de angústia todos os dias.

“Mudou muita coisa pra nossa família. Mas eu, estou presa com ele, mal posso sair”, conta minha mãe, todos os dias quando tocamos nesse assunto. A mãe sempre fala que a nossa vida mudou, e uma parte dela para pior. “Foi um período de muita pobreza. A gente criava os bichinhos, o básico tinha. Problema, era a falta de dinheiro para a saúde”.

Parece-me que saúde era uma palavra de preocupação para o meu pai. Minha mãe conta que ele tinha fitas cassetes gravadas com sua despedida. “Às vezes penso que ele previu que algo aconteceria com ele. Se não ele não deixaria gravado”, conta a mãe.

Hoje, a gente pega as fitas para ouvir. “Papai gosta muito de você”, ele fala em uma das gravações se referindo a mim. Mas ele fumava muito, principalmente nos últimos meses que antecederam o derrame. A roça já não produzia mais, ele não aguentava mais trabalhar no pesado na granja do Gambatto, o pouco que tínhamos, era conquista de minha mãe, que fazia queijos e vendia. Lembro que ela preparava as sacolinhas com bergamotas e puxa- puxa para eu e o Fabio vendermos na escola para comprar nossos tênis.

Mas vender bergamotas a vida toda não resolveria nosso problema. Talvez uma das questões que mais afetam as famílias camponesas e que aglomeram os centros urbanos, é à saída das pessoas da roça, a mudança de cenário rural para o operário de uma fábrica.

A gente vendeu nossa terra. Minha mãe achou que seria a melhor saída. E foi. No bairro onde ela e meu pai residem até hoje, no trevo da cidade, o acesso à tudo é maior. Minha mãe soube e precisou coordenar muito bem todas as mudanças de nossa vida.

Ela sofre muito ainda, a gente ajuda no que pode, mas cada um de nós tem uma vida e tem buscado construir uma família também. Carlos é o único que mora próximo dela, Fabio é casado e eu, vivo com meu companheiro, para lá e para cá, nunca em casa, nunca na rua, sempre em movimento. Mas todos, vivemos o reflexo de um derrame que eternizou imagens em nós.

Eternas também, foram as cenas que presenciei quando Carlos teve crises de epilepsia na minha frente. A exemplo de meu pai, ele também escondeu durante muito tempo, as crises que teve. Em sua estadia em Chapecó, em Santa Maria, em Cuiabá. Inúmeras foram às vezes que ele desmaiou e nos contou muitos anos depois.

Vê-lo no chão, fora de si, variando e falando coisas sem sentido. Assim o vi e assim também permaneci com medo de que acontecesse o mesmo que ocorreu com meu pai.

Sempre que chega a véspera de páscoa, deito a cabeça na cama repleta de lembranças. Recordo do pai me abraçando e me chamando de filha, tomando chimarrão com minha mãe e conversando com meus irmãos.

Recordo das cascas de cucas que recebemos em troca de um pedido desesperador de ajuda. Tento entender o porquê alguns tem tanto e ajudam tão pouco os outros, o porquê as pessoas precisam sofrer na vida. Com idade mais avançada, meu velho pai me olha, não tenho certeza se em todo olhar ele me reconhece, nos confunde facilmente, vive alimentado pela ciência, ainda bem.

Antes ele cuidava da gente, agora, a gente cuida dele. Nos deu tanto e para ele, sobrou tão pouco, em saúde principalmente, e para mãe então, nem posso pensar, pois me dói demais.

A gente dormia. Os preparativos para a chegada da páscoa estavam todos praticamente prontos. O coelho feito de algodão na aula de artes da escola era o que eu mais gostava, para completar ele, só faltavam às casquinhas que eu e o meu irmão do meio, Fabio, havíamos pintado durante a semana, com papel crepom vermelho, azul, amarelo e verde.

No fundo, existe um sonho gostoso, que eu tenho consciência, mora no coração, e que mostra para a gente, nesta data, a celebração da vida, como antes. Meus pais são trabalhadores e sofrem pela estrutura desse sistema. É isso que essa história representa. O sistema da morte destrói rápido e também, de forma lenta. A gente resiste, mas precisa avançar para acabar com essa repetição.