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“Um historiador na Itália”

“Um historiador na Itália”

Rodrigo Luis Mingori
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No norte da Itália encontrei uma branquitude da qual faço parte. Uma herança inconsciente. Não é algo que eu queira ou goste nem que pertença inteiramente, acredito dever aceitá-la como, dizia Heidegger, como um horizonte (im)possível.

Encaro essa branquitude da qual faço parte como um embarcado, pra usar a expressão de Fanon. O embarcado é um certo tipo de exilado. O embarcado é um entremeio, que escapa momentaneamente de seu lugar para tentar alcançar outro, inalcançável. Uma autoimposição apátrida baseada num certo desejo de ser aceito.

Estava ali como resultado de um processo longo e doloroso. Vi-me alijado da herança maldita de privilégios da minha terra. Pela primeira vez ocupando uma posição inferiorizada pela língua, origem e cultura. Encarar essa branquitude cancerosas foi horrendamente revelador.

Ela tem uma face glamurosa e pouco convidativa. Exige um pedágio a ser pago com a alma (e com a carteira). De início encanta qualquer desavisado, mas na primeira martelada de Nietzsche se despedaça em escombros feios. A beleza é tributária do sofrimento imperialista. A arquitetura e os afrescos manchados de sangue permanecem como memória material da violência.

Ocupar esse não lugar bastante corriqueiro, mas inédito pra mim, foi doloroso e ofensivo. Para alguém não acostumado a ter seus direitos e privilégios violados, essa supressão é uma afronta realizadoramente traumática. A comunidade de brasileiros no exterior elaboraram ou suprimiram essa violência cotidiana, difícil precisar. Convivem com o perigo, encarando o abismo. Alguns ainda idealizam o opressor, se agarrando ao julgamento imposto e justificando uma culpa arbitrária.

Sobre o visto, resta uma sentença: não é o tempo apenas que concede validade/qualidade a qualquer coisa. Esse pedaço do velho mundo parece ignorar essa premissa. “Veja minhas obras hó poderosos e desesperai-vos”. Descendentes de Orfeu, construíram palácios no Hades onde podem abusar do pecado de seu progenitor olhando sempre e apenas pra trás. Essa foi a Europa que conheci.

Percebi um nível agudo de idealização na vivência daquilo eivado pelo termo “Europa”. Ao adjetivar qualquer coisa dessa forma, um véu de confiança, autoafirmação e sucesso ganha espaço. É a idealização. A idealização da Europa ganha força na incapacidade de compreender minimamente a raiz das questões. Quando se olha a realidade apenas por aquilo que ela mostra, essa Europa é algo positivo, positivo demais. E eu caí nesse encanto nos primeiros dias, aproveitando uma série de benesses e facilidades, ignorante de seu custo histórico.

A história, esse artefato intencional e minuciosamente construído para justificar o injustificável, aparece como elemento estranho. Ela imbui às experiências de um misticismo secular. “Um historiador na Europa” me diziam, “onde está a história”, ou então, “deve estar amando”. Essa percepção bastante difundida me atacava, bem fundo. “Ai, do outro lado do oceano é onde está A História”, e a conclusão lógica, por oposição é: “ai é o lugar da história”, pois aqui ela não existe. Pois aqui, a história é a história do outro (uma fronteira bastante problemática da arqueologia e da antropologia nas Américas). Isso me atacava, fundo. Eu não estava amando, eu estava elaborando um trauma.

Encontrei ali, a contragosto, cheio de culpa, um passado sombrio, da qual eu faço parte. Eu me deparei com uma branquitude originária. Pude observar, por um instante, o início da genealogia do genocídio indígena imposto na minha terra natal – na verdadeira terra natal, o Oeste de Santa Catarina.

Muitas coisas do passado dessa região que vi me eram familiares. Alguns costumes antigos e em boa parte esquecidos. Um passado paupérrimo, bucólico e bonito, me parecia estranhamente familiar. E esse gosto logo amargou na minha garganta. Foi como contemplar aquilo que excede nossa capacidade de significar, tentar olhar o além, o fio da genealogia, a vontade cega de Schopenhauer, pois, de alguma forma, aquilo virou isso. Aquilo, o passado pobre e bucólico do norte Italiano se faz presente em alguns rincões do sul do Brasil, o grande êxodo como chamam lá. O sonho de pureza civilizatória tenta reatar esse cordão umbilical a muito rompido. Enlutados choram e rosnam sobre a placenta morta da imigração/êxodo numa tentativa vã de reconquistar com tristeza e com o sofrimento do imigrante o ingresso de volta ao velho mundo.

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Enfim, essas palavras iniciais são uma tentativa de elaborar o trauma residual de observar o inobservável. De tentar vencer a idealização daquilo que por um breve período vence o tempo e ganha alguns séculos. Preciso, também, fazer justiça nessas palavras: tudo isso se passou em dúvidas e ondas em meu íntimo e não refletem as pessoas maravilhosas que conheci por lá. Pessoas humanas, que se entendem e se apoiam, formam comunidades fraternas e vivem de forma autêntica. A essas pessoas gostaria muito de agradecer.

A Europa, a essa idealização supervalorizada, eu ainda tenho que digerir. Precisarei de tempo, espero poder usar esse espaço para compartilhar esse processo e convido você a me ajudar, estou aberto e necessitando de diálogo. Voltarei a esse assunto nos próximos momentos e ainda tenho muito a descobrir do que vivi, qualquer sugestão, análise ou feedback é bem-vindo. Essa é a primeira impressão talvez, de “Um historiador na Itália”.

Acredito que os próximos textos não serão tão confusos, porém não posso prometer nada. XD

Obrigado.