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O voo do entardecer e a experiência estética do devir

O voo do entardecer e a experiência estética do devir

Carlos Weinman
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Os três jovens viajantes estavam atravessando o Norte brasileiro para alcançar o Sul do país com uma combi, recentemente reformada. Uma viagem longa, com intensos desafios. Todavia, a percepção e a emoção da jornada já começaram antes de Ulisses ligar o veículo, pois a viagem exige um preparo de espírito, o que de alguma forma já faz parte do percurso.

A mensuração sobre as viagens pode ser dada sobre muitas formas, entre elas está a quilometragem, que em geral não consegue contabilizar a profundeza da experiência. Outro aspecto relevante, está no fato em que o registro, durante a jornada, através de fotos ou de imagens nada dizem sobre apreensão de sentido e de significado vivenciado, apenas indicam que alguém esteve e ocupou um lugar. O que faz a diferença é o modo como uma determinada viagem foi capaz de impactar o espírito ou a mente, de causar espanto, de chacoalhar, de imbuir o espírito em emoções e em experiências estéticas, que o discurso verbal é incapaz de reproduzir. Por isso, pode-se afirmar que é impossível ensinar estética, arte, mas é necessário aprender a ler o mundo a partir das perspectivas estéticas.

Disso resulta o questionamento sobre como as vivências são capazes de invadir a consciência do viajante, possibilitando aprimorar suas percepções, despertar sensações e sensibilizar para e na viagem. Nesse sentido, poderíamos estabelecer a comparação entre o espírito desatento, que “passa o olho” sobre uma imagem, uma pintura ou sobre as páginas de um livro, mas não consegue absorver o sentido e as experiências estéticas dessas obras. Por outro lado, os viajantes com o olhar apurado têm a capacidade de “assombrar-se”, já que estão  abertos o suficiente para ir além do que representam as imagens, conseguem perceber, até mesmo ser impactados pela obra de arte,  pelo caminho, pela viagem, ou seja, permitem a si mesmos ver  a beleza estética do estar e do vir a ser.

Durante a viagem de Inaiê, de Ulisses e de Roberto a sensibilidade, juntamente com a percepção estética estavam afloradas, muitos sentimentos faziam a apercepção das experiências; para começar, “o erguer do chão” de uma combi destroçada pelo tempo e, em seguida, a expectativa em chegar ao Sul do país.

Durante a viagem, em cada quilômetro rodado Inaiê falava para Ulisses:

– Quantos quilômetros ainda restam?

Ulisses com sorriso largo respondia para Inaiê:

– Não faltam tantos em relação àqueles que percorremos, mas o que está pela frente ainda temos todos.

Inaiê ficava indignada com a resposta do irmão, ao mesmo tempo o seu espírito se enchia com uma alegria intensa, pois nunca imaginou que faria o percurso com um amigo e com um irmão e quem sabe encontrar os demais familiares. Quando começou a falar, Roberto a interrompeu dizendo:

O ser humano tem uma tendência em achar que o caminho segue uma reta, como se saíssemos de uma realidade social, econômica e pela disciplina ou indisciplina teremos um determinado destino. Aprendemos a ignorar a relação, a percepção do movimento, pois o caminho dos viajantes não é retilíneo, mas é estruturado com muitas curvas, acidentes, percursos que modificam o planejamento, que embora necessário, não consegue dar conta das variáveis que serão apresentadas durante a vida, muitas vezes temos o sentimento de insegurança e conseguimos continuar a lutar. Entretanto, em outras situações, contamos com um sentimento de segurança e, então, caímos, não sabemos explicar, sofremos, choramos e quem sabe nos levantamos, movidos por uma força chamada de esperança.

Inaiê ficou perplexa pela visão de seu amigo, pois não havia pensado dessa forma, no entanto, tudo fazia sentido. Então, resolveu falar:

Essa sua visão Roberto pode ser aplicada sobre a minha vida e de Ulisses. Inicialmente a nossa família era feliz, parecia ter um paraíso que nunca iria acabar, tínhamos um ambiente seguro. Todavia, o desemprego e a doença do nosso pai nos separaram. Eu era apenas um bebê e fui parar em uma outra família, fiquei sem sobrenome. Quando comecei a viajar, achava que o percurso seria realizado solitariamente e nunca mais teria notícia das pessoas da minha família e muito menos teria um amigo como você. Eu achava que era o meu destino, mas pelo que você falou é apenas o eterno movimento inerente a natureza, ao universo e a humanidade, como disse um filósofo, que li outro dia, chamado Heráclito: “tudo está em movimento, a única certeza que temos é o devir”. 

As falas de Roberto e de Inaiê deixaram Ulisses pensativo por um tempo. Quando percebeu que sua irmã iria perguntar sobre quantos quilômetros faltavam, resolveu adiantar-se e falou:

 –  Vocês dois estão filosofando bastante, acredito que quando terminarem de narrar para os meus ouvidos a história da filosofia teremos chegado no Sul – Nesse momento deu uma gargalhada e depois continuou– Se tudo é um devir constante, é um sinal que muitas batalhas aparecem e aparecerão em nossas vidas. Por isso, gosto das histórias da mitologia grega. Enquanto vocês comentavam, pensei comigo que para os gregos, existiam vários deuses, eles eram parte da estrutura do cosmos ou universo. A deusa Atena quando nasceu, saiu da cabeça de Zeus, que a temia, pois acreditava que ela teria a sua força e ao mesmo tempo a inteligência. Ela, ao nascer já estava preparada para a batalha, é uma deusa guerreira, mas que não ama a guerra, age com estratégia, é inteligente, ao contrário do deus Ares, que tem sede por guerra e por sangue. Assim, trazendo a discussão do mito para as nossas vidas, vejo que é importante nos prepararmos para adversidade, não devemos amar a guerra, muito menos odiar, temos o desafio de continuar usando a inteligência.

No momento que Ulisses acabou de falar, Inaiê observou que havia uma ave caída ao lado da pista, como não conhecia muitas aves indagou:

– Olhem, que ave é aquela? Ela parece estar ferida.

Roberto respondeu:

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– É uma coruja, parece que a deusa Atena está passando por aí! Vamos ver se ela está bem, pare a combi Ulisses!

Ulisses parou a combi, Inaiê correu para ver a ave, viu que estava com a asa quebrada, pegou e falou com Roberto:

Temos que levar até a cidade mais próxima para ajudá-la.

Os três levaram a ave para a cidade mais próxima, acharam um lugar para fazer os procedimentos necessários. Pediram para o dono do estabelecimento se poderiam deixá-la. O proprietário respondeu que não tinha condições, mas poderia doar para eles comida e uma gaiola para a coruja, aconselhou que a levassem até as autoridades cabíveis para devolvê-la para seu habitat.

Quando os três foram entrar na combi, Ulisses mencionou que já era tarde e deveriam fazer uma parada. Roberto mencionou que alguns quilômetros para frente havia um lugar para estacionar a combi e abrir o toldo, para fazer a janta e repousar. Quando a coruja resolveu se manifestar, Inaiê ficou assustada. Roberto riu e disse:

Agora é final da tarde, a coruja tem hábitos noturnos. Enquanto todos vão dormir ela levanta voo, ficará vigilante. Dessa forma, temos uma nova companheira de viagem, como diria os gregos: a deusa Atena, que para os romanos era Minerva, estará nos protegendo.

Os três personagens ganharam uma companheira de viagem, que não foi convidada. No entanto, a coruja precisava de auxílio. Ademais, o primeiro dia da viagem revelou uma estética e um sentido próprio, perceptível para seus espíritos, que foi marcada por um conjunto enorme de percepções, de experiências, constituindo inúmeros sentidos e significados, o dia foi apreendido esteticamente pelos nossos personagens. A riqueza disso tudo está nos seus espíritos, já a narrativa apenas descreve, mas é incapaz de trazer a experiência estética da vivência de um dia em busca dos irmãos, que estão na condição de estranhos, não são conhecidos. Os viajantes não possuem a consciência do que os aguarda, mas o que importa para eles é o desafio da busca.