Que processo civilizatório vivemos?
O que nos coloca aqui a discutir questões sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que preferimos seguir chamando de catálise de um grande problema, é o fato de apostarmos constantemente no aprimoramento humano nos mais diferentes níveis de formação. Insistimos, mesmo a par da necessidade de outras inúmeras variáveis para aprofundar os debates, em colocar a leitura crítica de diferentes pensadores, com foco nos conhecimentos e situações concretas da sociedade contemporânea, como a mais eficiente das ferramentas. Atitude que vem sendo abandonada gradativamente, tanto por professores, como por estudantes e, lamentavelmente, por toda a população em geral, ocasionando um vazio reflexivo que tem custado alto preço na identificação de vários problemas, principalmente os sociais que ficam obliterados pela contumaz prioridade que se dá ao pragmatismo do lucro e da eficiência dos processos.
Sabemos que essa responsabilidade não pode ficar apenas a cargo dos professores – falamos neles, porque somos uns deles – e das próprias escolas que se esmeram a tentar produzir estas qualidades cada vez mais desejadas. Necessitamos de políticas públicas consistentes que permitam estabelecer um ensino reflexivo e aprofundado para todas as classes sociais. Processos interdisciplinares efetivos que possibilitem o conhecimento do mundo em que vivemos na relação indissociável entre a sociedade e a sua produção cultural e tecnológica.
Este trabalho hercúleo também se fundamenta em alfabetizar científica e tecnologicamente todas as pessoas para que elas saibam em que mundo estão pisando. Se essa alfabetização não se efetivar se estará priorizando o domínio hegemônico dos que “sabem” sobre aqueles que apenas “usufruem” um destino que lhes é imposto.
Nosso trabalho na qualidade de educadores é gerar e disponibilizar constantemente conhecimentos sobre as variáveis contemporâneas que influenciam o comportamento do processo civilizatório atual. Para isso precisamos modificar radicalmente a concepção curricular fechada que criamos para um sistema que parece falir a cada dia para trazer de volta – ou criar – uma educação mais criativa e libertadora. Quando falamos em concepção fechada de currículos não estamos apenas ressaltando a limitação de disciplinas nos espaços formais das escolas e sim a limitação de espaços para análises em todos os locais com pessoas – um jornalismo para a classe, é uma delas – de questões que extrapolam as linearidades do funcionamento pragmático dos processos.
Agora, nós é que seremos pragmáticos ao utilizar a nossa principal ferramenta – a leitura – para tecer mais alguns argumentos através daquele que julgamos, talvez, ser hoje um autor em consonância com as questões que estamos tentando estabelecer para elaborar, o que chamamos de equação civilizatória. Falamos de Harari, que através dos seus três últimos livros – Sapiens, Homo Deus e, também, 21 lições para o século 21 – nos alimenta com questões que geralmente passam despercebidas nas nossas concepções de educação e aprendizado e, que podem ser determinantes nas questões futuras da humanidade.
Em 21 lições para o século 21 ele nos brinda com temas tais como: desilusão, trabalho, liberdade, igualdade, comunidade, religião…educação, sentido e até ficção científica (HARARI, 2018). Poderíamos nos utilizar do livro todo, mas vamos buscar um exemplo mais pontual, num de seus inúmeros fragmentos geniais e utilizando suas próprias palavras – o fazemos porque não conseguiríamos ser tão didáticos e claros como ele – tentar mostrar a forma como ele “mistura” as variáveis contemporâneas em análise que muitas – para não dizer sempre – nos escapam nos herméticos livros e métodos escolares. Ao iniciar o capítulo sobre Ficção Científica ele já nos alerta que o futuro não é o que você vê nos filmes e nos arrasta para uma discussão de profundidade técnica e filosófica, costume que temos que reaver nas nossas lidas com a educação. O trecho, um pouco longo pela necessidade do entendimento do encadeamento de várias variáveis para elaborar o raciocínio, do qual nos apossamos aqui, nos dá uma demonstração da pertinência do tema e a profundidade de sua análise:
Os humanos controlam o mundo porque são capazes de cooperar melhor do que qualquer outro animal, e são capazes de cooperar tão bem porque acreditam em ficções. Poetas, pintores e dramaturgos são, portanto, pelo menos tão importantes quantos soldados e engenheiros. As pessoas vão à guerra e constroem catedrais porque acreditam em Deus, e acreditam em Deus porque leram poemas sobre Deus, porque viram imagens que representam Deus e porque ficaram hipnotizadas ao assistir peças teatrais sobre Deus. Da mesma forma, nossa crença na moderna mitologia do capitalismo é sustentada pelas criações artísticas de Hollywood e pela indústria pop. Acreditamos que comprar mais coisas vai nos fazer felizes, porque vemos o paraíso capitalista com nossos próprios olhos, na televisão (HARARI, 2018, p. 304).
Harari começa nos chamar a atenção para a necessidade de ver os problemas e os acontecimentos humanos não da forma linear como geralmente o fazemos nos compêndios escolares. Mas, ainda tem muito mais coisas embutidas no delineamento de seus raciocínios e reflexões:
No início do século XXI, talvez o gênero artístico mais importante seja a ficção científica. Muito pouca gente leu os artigos mais recentes nos campos do aprendizado de máquina ou da engenharia genética. Em vez disso, filmes como Matrix e Ela e séries de televisão como Westworld e Black Mirror expressam como as pessoas entendem os mais importantes desenvolvimentos tecnológicos, sociais e econômicos de nossos tempos. Isso significa também que a ficção precisa ser muito mais responsável quanto ao modo como descreve realidades científicas, do contrário poderá incutir nas pessoas ideias erradas, ou focar sua atenção nos problemas errados. (HARARI, 2018, p. 304-305).
Quando estamos absortos em repassar conteúdos “modernos” para nossos alunos, e para outras pessoas de nossas relações, raramente nos preocupamos com as mensagens sub-reptícias de certos textos, ou mesmo filmes que também se constituem em excelentes materiais de aprendizado, porque não temos tempo nos comprimidos afazeres que nos aprisionam a seguir temas muitas vezes distantes das realidades atuais. Isso foi um dos motivos a escrever esse pequeno texto para catalisar estas questões e elegermos as leituras críticas, atuais e mesmo distantes dos compêndios escolares como uma grande solução. Quer dizer dentro dos parâmetros da escola fechada e repassadora de conteúdos, bem como discussões inesgotáveis de reuniões de associações e similares, seguimos com Harari nesse seu pequeno relato do cuidado que temos que ter com os assuntos que podem mascarar o sentido da narrativa:
Talvez o maior pecado da ficção científica atual seja a tendência a confundir inteligência com consciência. Como resultado, está preocupado demais com uma possível guerra entre robôs e humanos, quando na realidade devemos temer um conflito entre uma pequena elite de super-humanos com poderes ampliados por algoritmos e uma vasta subclasse de Homo sapiens sem nenhum poder. Quando se pensa no futuro da I.A., Karl Marx ainda é um guia melhor que Steve Spielberg. (HARARI, 2018, p. 305).
Não precisa desenhar para ver a importância que Harari nos aponta em relação à questão humana em detrimento da questão técnica nos aparatos que seguem nos seduzindo por vias tortas. Ele complementa este reforço em relação a análises mais completas sobre esta relação complexa entre homens e máquinas com este novo trecho a seguir:
De fato, muitos filmes sobre inteligência artificial são tão divorciados da realidade científica que se pode suspeitar serem só alegorias de preocupações completamente diferentes. Assim, o filme Ex Machina: instinto artificial parece ser sobre um especialista em IA que se apaixona por uma robô e acaba sendo enganado e manipulado por ela. Mas na verdade não é um filme sobre o medo que humanos têm de robôs inteligentes. É um filme sobre o medo de que a liberação feminina possa levar à dominação dos homens. Sempre que você assiste a um filme sobre IA no qual a IA é mulher e o cientista é homem, provavelmente é um filme sobre feminismo, e não sobre cibernética. Pois por que cargas d’água uma IA teria uma identidade sexual ou de gênero? O sexo é uma característica de seres orgânicos multicelulares. O que poderia significar para um ser cibernético não orgânico? (HARARI, 2018, p. 305).
Apenas uma das mais de 350 páginas deste livro nos mostra a necessidade de análises mais cuidadosas das “artimanhas” que as máquinas poderão nos aprontar nesse futuro tão premente. O autor durante todo o livro sempre nos “cutuca” mostrando que os algoritmos que sustentam o comportamento da IA, da internet das coisas, da Impressora 3D e demais aparatos é sempre produzido pelo homem. Portanto!
Outro autor importante nesse nosso processo de ver a necessidade de entendermos a interconexão de todas essas variáveis contemporâneas é Kevin Kelly. Ele nos diz ao longo de todo o seu livro “Inevitável” (2017) que o avanço tecnológico é inevitável e por isso ao invés de lutar contra a máquina, precisamos aprender a viver com a máquina. Porém, para seguirmos com o timão do processo precisamos cada vez mais entender quais os valores que definirão o comportamento humano nesse emaranhado de bits, Interligações e parafernálias tecnológicas.
Por isso, precisamos aproveitar estes espaços formativos que servem de catalisadores para estas questões e devemos estar muito atentos em enfatizar a todo momento a importância dos professores e todos os cidadãos compreenderem o processo civilizatório contemporâneo, que arrasta consigo uma nova equação civilizatória, a Revolução 4.0 ou 5.0 que seja, e todas as variáveis desse processo. Isso implica estabelecer prioridades efetivas em estudos fortemente calcados nas questões que dizem respeito ao homem e seu entorno – técnicas, humanas, sociais e ambientais – em todas as áreas do conhecimento.
E, talvez, a principal questão nessas atitudes a tomar, seja ter como premissa que as novas variáveis do mundo real, fortemente calcadas no desenvolvimento tecnológico, não podem nos acantonar amedrontados como humanos nesse alucinante processo civilizatório.
Referências
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
KELLY, Kevin. Inevitável: as 12 forças tecnológicas que mudarão nosso mundo. Tradução Cristina Yamagami. São Paulo: HSM, 2017.