REFLEXÕES COTIDIANAS – tu faz parte como se fosse da família?
Ao ouvir histórias contadas e ao ler histórias escritas, uma coisa tem me chamado a atenção nessas relações entre patrão e peão, entre a patroa e a empregada doméstica/diarista, quando dizem “tu faz parte como se fosse da família”.
O que isso realmente quer dizer?
Nas minhas andanças lembro de quando andava pelo Rio de Janeiro e via as babás segurando as sombrinhas pras suas senhoras e crianças, ou quando morei em São Paulo a vez que alugamos um apartamento e tinha um quarto de empregada sem janelas com entrada pela cozinha e elevador de serviço.
Talvez um sistema de opressão disfarçado no tratamento de igualdade? Ou será um sistema servil de uma “escravização paga”? (sabemos que escravização não é paga, então entendam que as aspas aqui nesse texto contém sempre muita ironia, por favor).
Mas é nesse meio que ainda existem muitas dessas relações nos dias atuais, na precarização do trabalho, nas relações estabelecidas entre patrão e empregado que são relações de trabalho sem direitos trabalhistas, mas que ainda cultuam aquele sentimento de dívida por parte do empregado ao seu patrão, por ter dado a ele um trabalho, por ter por muitas vezes a relação de “cumadre/cumpadre”, tanto pelo empregado ter convidado o patrão para ser padrinho de seu filho, ou da patroa por ter chamado a empregada para ser a madrinha de casa de sua filha, porque na igreja as madrinhas são as amigas da patroa.
Mas é nessa relação que se confunde entre “família” e servilidade. É uma linha tênue, porque envolve sentimento, intencional ou não, cultural talvez; mas uma coisa é certa, há o lado que manda e o lado que obedece, há aquele que trabalha e aquele que fica sentado.
São esses os tratamentos para com quem “faz parte como se fosse da família”. Silva (2021), diz que “assim dinâmicas de trabalho permeadas por uma ambiguidade afetiva que, por vezes, estabelecem aproximações e violam direitos” É nisso que se resume essa reflexão, as “famílias” também violam direitos.
E assim essa linha se confunde entre a empregada que não cuida de seus filhos para cuidar dos filhos da patroa, entre o patrão e o peão de fazenda, entre aquelas meninas que saiam de suas casas para trabalhar de empregada na cidade com 10 anos de idade, não se enganem, ainda há muitos casos por aí.
Infelizmente essas desigualdades, essa servilidade, opressão e preconceito ainda existem. Mas muitas vezes nós escolhemos não enxergar.
Aqui ainda caberia falar sobre terceirização do trabalho, trabalho invisibilizado e até mesmo trabalho autônomo, todas as situações são cada vez mais com menos direitos e menos ganhos salariais. E vejam que aqui nem entrei na discussão sobre raça ligada a esse tema, que teria muito pano pra manga a respeito disso.
Obviamente como sou professora e já passei por espaços de escolas particulares, escolas de movimentos sociais, escolas do campo e pela universidade, fico pensando o que cabe a nós mulheres em cada espaço desses, o que cabe a nós professoras em cada lugar, como fui tratada muitas vezes como uma empregada (porém professora), como fui maltratada até mesmo pelos alunos e como isso reflete em nossa atuação na vida e na carreira, que será tema das reflexões aqui compartilhadas no próximo mês.
Referências:
Livro de Marusa Silva, intitulado “Como se fosse da família”: desventuras das babás da elite carioca, 2021, Editora Autografia, Rio de Janeiro.
El país. A vida de uma babá no clube mais seleto do Rio de Janeiro. 2016.
Link de acesso: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/27/actualidad/1464300764_523657.html
Filme: Histórias cruzadas. Duração 2:31h, 2012.
Historiadora, mãe e Educadora Popular, possui Licenciatura em História pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) em parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e o Instituto Técnico de Educação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA). Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).