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Inaiê e Ulisses: os estranhos que se encontraram

Inaiê e Ulisses: os estranhos que se encontraram

Carlos Weinman
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A humanidade está perdida para o humano!  Poderia um texto começar com essa contradição? Provavelmente não é a maneira mais adequada, ainda mais quando há a intencionalidade de relatar o percurso de uma viagem. Por outro lado, a frase é menos inapropriada se for considerada a condição do humano que não reconhece seu semelhante, o que suscita um novo questionamento, isto é, como é possível que os humanos estejam alheios em relação  aos seus semelhantes? Uma resposta possível está no conceito de estranheza.

Por outro lado, a estranheza parece ser a constatação ou o efeito de muitas formas de existência daqueles que esqueceram da condição humana, do ser. Tal perspectiva costumava perambular nas mentes das pessoas, fazia parte da história do pensamento humano. No entanto, os personagens presentes nas histórias dos viajantes são representações de vidas, de muitas possibilidades de ser e esquecer, das muitas formas de fazer e para usar uma figura de linguagem, “de formas”.

No conjunto das ações humanas que levam para os labirintos do estranhamento, os corpos aparecem enquanto o ser desvanece, o espírito empobrece, as janelas do mundo se abrem através de muitas janelas, que no contemporâneo são mediáticas, tecnológicas, capazes de refletir através de vídeos, de fotos, de imagens, de relatos, as meras sombras do que costumava significar o ser, o resultado está na incessante busca pela representação da felicidade não alcançada e ao mesmo tempo aparente.

Nas aventuras dos viajantes contemporâneos, a estranheza compõe o movimento da matéria e dos espíritos, o que se apresenta diante das incertezas e dos desencontros é o questionamento: onde poderá ser  encontrada a humanidade? Essa indagação ganha força na medida em que os homens, as mulheres e as crianças vislumbram, na maior parte do seu tempo, várias câmeras, espelhos, que os tornam capazes de perceber o que está na superfície, sem encontrar a profundidade, a essência do que vem a ser a condição humana, bem como o ser.

Enquanto isso, muitos pais, juntamente com seus filhos absorvem com intensidade o labirinto da estranheza nas entranhas de  suas almas, gerando muitas formas de sofrimento, impulsionando a busca por alternativas na medida que o labirinto consome a alma ao ponto da tristeza não ser apenas uma parte da condição humana, tornando-se a “cova” do ser, o que implica no sentimento de esvaziamento, calcado na  perda da vontade de existir.

Nesse campo minado, alguns encontram motivações que ensinam a empreender, a buscar vencer, a ter poder, mas permanece a questão: o que se pode ganhar quando já se perdeu o ser?  Diante disso, os muitos personagens, das várias histórias humanas trazem percursos, que buscam encontrar algo perdido, mas como a questão é abstrata, fica a questão, o que se perdeu? A humanidade? Em que lugar é possível encontrar esse bem tão precioso que nos define?

Se buscarmos por uma essência da humanidade podemos afirmar que ela pode ser vislumbrada em uma necessidade, isto é, a de  interação com nossos semelhantes. Visto que não basta a tecnologia, a razão, a ciência para definir o humano, ao contrário, a humanidade é que se revela através desses meios.

Na antiguidade grega, o filósofo Aristóteles chegou afirmar que a racionalidade humana depende das relações sociais, já que essa estimula o que está em potencial, isto é, a linguagem e a racionalidade. A sociabilidade constitui a condição necessária para desenvolver o que seria apenas uma possibilidade, uma potência. A partir desse princípio, não haveria a linguagem sem o processo de interação. Seguindo o mesmo raciocínio, não é possível desenvolver a racionalidade sem a linguagem. Por consequência, a capacidade de abstração, de racionalização, de explicação dos fenômenos sociais e naturais dependem dos estímulos sociais que são dados durante a vida marcada pelas relações.

Outra questão importante está no fato em que algumas contradições aparecem na vida dos seres humanos. Entre as principais, encontra-se o fato de que o outro é imprescindível para o desenvolvimento das pessoas, ao mesmo tempo, existem dificuldades de relacionamento, o que leva os indivíduos a serem definidos como seres solitários. Tal problemática não é exclusiva da modernidade, já que Aristóteles chegou a destacar o desafio de encontrar um amigo durante a vida.

A amizade era definida pelos gregos antigos como uma forma de amor, que pressupõem uma habilidade que está em falta, ou melhor, amigo é aquele que vai ao encontro do outro, sem querer posses, vantagens ou bens, a única recompensa que se exige é a reciprocidade. Por incrível que pareça, o filósofo grego chegou a comentar que se um ser humano encontrasse um amigo durante a vida já teria muito, isto é, teria conquistado uma das maiores façanhas humanas.

Em contrapartida, no contexto de Inaiê, o ser humano passou a não dar importância para os sentimentos como amizade e amor. A busca por poder e riquezas passaram a ser a motivação dos homens e mulheres, que desaprenderam a valorizar as pessoas que estavam à sua volta. O outro passou a ser apenas uma possibilidade de muitas faces no meio da multidão, mesmo sendo obrigados a conviverem no mesmo espaço.

Nesse contexto, a vida dos indivíduos passou a ser marcada pelo cercamento, motivados por muitas formas de medos, grandes centros urbanos passaram a contrastar,por um lado, com  a quantidade de pessoas, por outro,  com o sentimento de solidão e de vazio.

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É possível observar que o planeta cada vez mais tem a presença dos seres humanos, que desenvolvem novas tecnologias e as formas de comunicação foram e são aperfeiçoadas, juntamente com o fortalecimento do sentimento de solidão e de individualidade. O mundo passou a ser constituído por bilhões de pessoas que representam de diversas formas um sentimento generalizado de estranheza em relação aos outros.

Antes do nascimento de Inaiê haviam surgido novos viajantes, chamados de apáticos, que mudavam de espaço, conheciam mais o planeta, pois para muitos deles tornou-se fácil viajar, mas continuavam solitários e ignoravam as maiores riquezas do planeta que não são medidas por valores monetários. Nesse contexto, sentimentos confusos e questionáveis surgiam a todo momento. Entre eles o ódio, o medo, a traição, seguida da busca de prazeres momentâneos para uma vida medíocre, sem felicidade, por vezes, muitas alegrias eram interrompidas pelo vazio do ser decorrente da falta do outro.

Formas para superar o esvaziamento dos indivíduos foram criadas, entre elas, o registro através de fotografias, compartilhadas nas redes sociais. Esses registros deveriam mostrar a vivência, as experiências significativas dos indivíduos, mas não inventaram uma máquina para isso.

Dessa forma, antes de Inaiê e até agora, o desafio permanece em dar sentido e significado para a essência da vida humana, o que somente é possível se utilizarmos a expressão “andar com”. Na natureza de Inaiê está a essência de viajar, de ir para uma jornada em busca da humanidade.  Existem muitos viajantes, nem todos conseguirão alcançar a nossa personagem, pois o despertar do pensamento não ocorre individualmente, o caminhar deve se unir com o dialogar. Para isso, o outro que se apresenta deve ser encontrado, não ignorado. A felicidade de Inaiê começou, pois encontrou um amigo. No centro da estranheza do mundo, um sorriso, um apoio solidário despertou uma amizade. Assim, Inaiê começou, de fato, a percorrer a sua jornada em busca da humanidade com seu amigo Ulisses.