Um brasileiro: Abdul pai de Ulisses
Inaiê e Ulisses começaram uma história de amizade. Entre amigos é natural a confiança em relação aos segredos mais profundos e doloridos. Ulisses tinha um caminho marcado por dificuldades, toda sua família fazia parte do universo daqueles que não poderiam ser encaixados, seu espírito fora consumido pelo desespero do mundo, faltou pouco para perder sua essência, seu ser. Há muito tempo já andava como uma espécie de morto vivo, consumido pela dor e desilusão, seguia sem rumo até que encontrou Inaiê, que no meio da tempestade a salvou, mas ao fazer isso, não sabia que estava de alguma forma ajudando a si mesmo. Isso pelo fato de ter encontrado alguém para partilhar o fardo da trajetória. Pela primeira vez teve um sentimento de tranquilidade para desabafar o que tanto o sufocava, por isso conseguiu a coragem necessária para externar o que estava escondido na sua alma, que era a dor que o acompanhava desde menino, pois cresceu envolvido no estigma de perder sua família e tornar-se um estranho no mundo.
O pai de Ulisses se chamava Abdul e deixou a família quando completou 35 anos. Eles residiam em uma pequena cidade, na região sul do Brasil. A família possuía alguns costumes locais, como tomar chimarrão ao redor do fogão a lenha no final do dia. Esse era um momento muito especial, os pais de Ulisses e seus irmãos contavam as dificuldades do dia, os acontecimentos da vizinhança, as histórias dos antepassados. Quando havia alguma travessura dos filhos, seu pai erguia a voz por um breve momento, em seguida a tranquilidade voltava com a voz calma da mãe.
Abdul começou a trabalhar cedo, aos quinze anos, em uma fábrica de bebidas. Ele dizia para os amigos que o trabalho era a condição para conquistar e realizar sonhos. Esse princípio fazia parte de sua utopia. Contudo, o seu salário não dava conta nem para pagar a alimentação, uma vez que era menor de idade e recebia menos do que os demais operários. Na empresa ele não aprendia muita coisa, já que sempre trabalhava em um mesmo setor. Ele achava que, acima de tudo, era feliz, pois sabia que haviam muitos desempregados em sua cidade, em seu país. Abdul acreditava que era de fato feliz, ganhava quase um salário!
Quando completou dezoito anos, a alegria transbordou, começou a receber um salário e meio, ainda era pouco para quem queria vencer na vida. Entretanto, não havia escolha, era obrigado a sujeitar-se a qualquer trabalho e salário. Dado que muitos sonhavam com o seu lugar, de certa forma era um privilégio, tinha um trabalho, embora esse não o realizasse, não proporcionava muitos conhecimentos. Toda a sua capacidade estava reduzida aos movimentos mecânicos necessários para a produção. Ele trabalhava, não pensava, não planejava, não desenvolvia sua criatividade, mas mesmo diante de tantos ‘não’, era feliz, tinha um trabalho.
Ademais, embora o salário não fosse tão expressivo não deixava de ser uma conquista. Por outro lado, Abdul sabia que o ritmo e as condições de trabalho apresentavam o risco de causar lesões, sua razão soprava para sua consciência um temor de não conseguir o sucesso almejado, mas a fé o sustentava.
Infelizmente parece ser válido o ditado popular: “alegria de pobre dura pouco”. Um dia Addul sentiu que seu braço havia perdido parte dos movimentos, já estava com vinte e seis anos, assustado foi falar com o responsável do setor. Esse diagnosticou o problema, perda na produção, o que não poderia acontecer! Abdul acabou sendo dispensado, não por ser um péssimo trabalhador, mas pelo trabalho ter causado uma doença que impedia os movimentos e reduzia a produção.
Não tendo trabalho, Abdul passou não ter apenas perdido sua realização social, mas, também, foi privado ao acesso ao alimento, a casa e a saúde. A tristeza estava em sua face, chorava quando via seus filhos com fome, por não terem acesso a uma educação de qualidade. Quando seus filhos iam à escola, seus colegas ainda caçoavam. Para ganhar a vida, Abdul passou a pedir esmolas e procurar comida no lixo. Aqueles que o encontravam na rua diziam para ele ir trabalhar. Contudo, ninguém empregava mendigos, muitos menos com problemas de saúde.
Para surpresa de Abdul, a tristeza ainda tinha espaço para aumentar. Nesse caso, já não era mais válido o adágio popular confortante em que “há sete anos de vacas magras e depois o retorno da prosperidade”, já que estava mais para o princípio em que depois das “vacas emagrecerem elas poderiam piorar e morrerem”. O motivo desse pensamento foi o encontro de Abdul com seus ex-colegas de trabalho, os quais estavam disputando um pedaço de presunto, perto de uma lixeira, de um saco de lixo. Naquele momento surgiu em seu espírito um misto de tristeza e de revolta, movido pela curiosidade, Abdul foi indagar o que havia acontecido por eles estarem ali. Para sua surpresa, a resposta foi rápida e, ao mesmo tempo, sombria, já que a fábrica comprou máquinas modernas, mais eficientes e rápidas do que os operários, não restando mais espaço para eles.
Um ano depois, um dos acionistas da empresa, que demitiu Abdul, buscava por um cargo eletivo, queria ser prefeito da cidade, começou a doar donativos, prometer empregos aos desempregados, até beijar criancinhas. A publicidade encarregou-se de desenvolver a imagem do homem bom e generoso.
Quando Abdul completou trinta e cinco anos de idade tornou-se notícia: mendigo bêbado é queimado por filhos de pessoas bem-sucedidas com acesso a uma “boa educação”. Os tambores ressoavam tristeza e desespero para viúva e filhos, por outro lado, isso era visto como normalidade pela nação, era apenas mais um. Abdul, seus filhos e colegas de trabalho constituíam apenas um número na sociedade, onde a exclusão concedia alguns um futuro surpreendente. A partir dessa data, cada um dos irmãos de Ulisses foram parar em abrigos para órfãos, nunca mais teve notícias de sua mãe, foi quando Ulisses começou a sua jornada para encontrar os estranhos que como ele não podiam ser vistos, mesmo sendo apenas um menino perdido na multidão.
Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.