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Noite: comida, tempero e boa conversa

Noite: comida, tempero e boa conversa

Carlos Weinman
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O final do dia chegou, o pôr do sol demostrou a sua exuberância. Inaiê ficou admirando aquela cena deslumbrante, pensou consigo sobre a riqueza do momento, nunca havia, até então, concedido um tempo para apreciar a beleza do término de um ciclo, um verdadeiro espetáculo promovido pela natureza.  Assim que Roberto percebeu que o olhar de Inaiê estava contemplando a beleza daquele instante resolveu romper com o silêncio:

 – É linda essa paisagem, todo dia o horizonte apresenta uma beleza singular, os lugares proporcionam diferentes ângulos e percepções do final do dia. É triste saber que muitos passam uma vida inteira sem apreciar a beleza que se revela na simplicidade, acabam percebendo os dias como passagem de horas, minutos, dia e noite, mas os elementos estéticos dessa contemplação são únicos e não podem ser ensinados, não existe um tutorial para contemplar a riqueza que esses momentos revelam para a interioridade do nosso ser. O fato é que podemos deixar em ser conduzidos pela beleza, tão simples, mas nunca simplória. Para mim viver é isso, não existe um manual sobre a vida, nem lições sobre a felicidade, simplesmente precisamos viver, aprender a valorizar as coisas simples e ricas que a trajetória possibilita. Esse espetáculo da natureza, o pôr do sol, sempre é diferente, mesmo sendo o mesmo lugar. A nossa percepção também muda, pois somos construtores do nosso ser e nos modificamos a todo instante.

Inaiê falou para Roberto que estava realmente contemplando a riqueza que o pôr do sol era capaz de proporcionar, juntamente com a composição da cena, que envolvia os três, com o toldo da combi aberto, os dois tentando cozinhar, pois eram ótimos companheiros de viagem, mas péssimos cozinheiros, mas que aprenderiam com o passar do tempo. Enquanto isso, a coruja atenta visualizava aquela cena tão singular. Quando Inaiê terminou de relatar suas impressões, Roberto riu e disse:

– Realmente sou um péssimo cozinheiro, mas seu irmão Ulisses é pior!

Foi quando Ulisses se aproximou e discorreu que não era um péssimo cozinheiro, mas que o momento era tão lindo, que a concentração estava mais voltada para contemplação do que para arte culinária. Os três jovens começaram a rir, quando Ulisses subiu em um tronco de uma árvore caída e começou a fazer um discurso, parecia ser um cidadão da Grécia antiga que acabara de tomar para si o direito de pronunciar suas considerações:

 – Roberto o seu sobrenome é intrigante! Parece que você é um filho de um deus – riu e continuou – Apolíneo vem de Apolo, que para os gregos era o deus do sol, da razão, da harmonia. Os gregos diziam que o dia começava quando o carro de Apolo saía do templo dos deuses, o Olimpo, o anoitecer seria o retorno do carro de Apolo para a morada dos deuses.

O entusiasmo de Ulisses foi interrompido pelo questionamento de Inaiê:

Você parece viver na mitologia, a voz da ciência e da razão vão dizer que tudo isso é mera ilusão!

Ulisses não parou diante das afirmações da irmã e disse:

Os mitos podem ser definidos como frutos da imaginação humana, mera ilusão, são narrativas que não estavam preocupadas com as contradições. No entanto, revelam uma capacidade humana ou sentimento em admirar o natural, de perceber o que não era explicável pela razão, pela ciência, o que possibilitava aos humanos o vivenciar de algo tangente ao encantamento, que na sua simplicidade, por vezes ignorada, era e ainda é deslumbrante. Isso pelo motivo de que o cosmo, a natureza, a vida e o próprio fenômeno do pensamento são magníficos e nós, os viajantes do mundo, esquecemos o quanto são boas e maravilhosas as coisas simples da vida. Temos muita tecnologia ao nosso favor para conhecer mais sobre o universo e o ser humano. Porém, parece que perdemos o deslumbramento, o olhar com magia pelas coisas e pela vida, tornamos escravos de ideias sem sentido, que aos poucos trazem a perda da essência, vamos abafando a vontade de viver, deixamos de lutar por nós, passamos a lutar por bens, mas não pela vida e dignidade.

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Roberto estava ouvindo atentamente o debate dos dois irmãos e, ao mesmo tempo, olhava para a lua cheia que estava surgindo majestosa no firmamento em pleno Norte brasileiro, uma visão espetacular, a lua parecia que iria invadir a terra tão majestosa. Roberto então resolveu romper o silêncio dizendo:

Muitos povos, incluindo muitos índios que moravam e moram nessas redondezas também tinham histórias maravilhosas sobre esses fenômenos. Parece que todos os povos de alguma forma já contemplaram a natureza e a vida sobre uma perspectiva movida pelo deslumbramento. A partir disso, surge a questão: a ciência tem que ser o fim do encantamento do humano pelas coisas, pela vida e pelo universo? Lembrei que o filósofo Nietzsche não considerava que o ser humano seria mais autônomo por ser mais racional, ter mais ciência. Aliás, as técnicas poderiam continuar mantendo o ser humano preso, sendo um escravo. Ele dizia que a melhor parte da história do pensamento humano estava restrita a um pequeno grupo de filósofos, chamados de pré-socráticos. Nesse contexto, o mito, a arte, a vida e a razão se completavam. Quem sabe se pudéssemos resgatar do humano a capacidade de sentir esteticamente, sensibilizar e não viver apenas para o futuro, para apropriação de bens, talvez encontraríamos seres melhores, quem sabe as descobertas da ciência possam um dia ser não mais impulsos para o poder, mas formas de maravilhar o olhar do humano diante do fenômeno da vida. Para isso, apreciar coisas simples como o céu estrelado e essa lua devem ser o começo.

Após a fala de Roberto a coruja se agitou, parecia concordar, os três adormeceram em pleno Norte brasileiro, em uma noite de lua cheia, na ferrugem dos esperançosos, o tempero da janta fora a magnifica imagem e experiência que o lugar e companhia poderiam dar.